segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Valorização da Cultura afro brasileira



Notícias - A cor da cultura


Candomblé, afinal o que é?

 
01/10/2010

Candomblé, afinal o que é?

Jairo SantiagoProfessor Doutor em Comunicação /ECO/UFRJ


Desde o século XVI milhões de negros vindos da África chegaram à costa brasileira, são de diversas etnias, que, mesmo considerada a diversidade cultural, comungam do fato de terem perdido as referências territoriais e comunitárias.
Restavam-lhes apenas os valores e princípios que demarcavam sua visão de mundo.
Esse grupo utiliza as mais diversas formas e táticas de  sobrevivência.
Importante que se diga, que não se tratava apenas de uma sobrevivência espiritual, mas principalmente do corpo, de uma forma de viver.
Diante da adversidade da escravidão, era preciso recompor as referências perdidas. A religiosidade se prefigurou como um dos caminhos possíveis nessa empreitada, e o Candomblé, dentre outras manifestações religiosas se singularizou na manutenção de valores e princípios negros na diáspora. O Candomblé em sua expressão de maior magnitude, a comunidade-terreiro, permitiu a recriação de laços  comunitários e territoriais aniquilados com a escravidão.
Mas afinal o que é Candomblé?
Em primeiro lugar se faz necessário pensar que se trata de uma poderosa síntese que se processou em território brasileiro, sendo assim resultado de um longo e doloroso processo histórico, no qual os negros escravizados e, posteriormente os libertos, tecem laços comunitários e territoriais, consideradas as diversidades adversidades.  O negro se moveu, resistiu, se comunicou entre os fios da rede da repressão.
Entender essa tensa rede de acordos e enfrentamentos, de avanços e retrocessos, de disputas e acertos internos é o longo caminho para se compreender o que é o Candomblé. Nesse sentido, se lança mão aqui de uma metáfora para se tentar chegar a um primeiro entendimento do que seja candomblé, ou pelo menos uma de suas traduções possíveis:
Imagine que uma pessoa viaja até a África e que lá chegando conhece um determinado prato da culinária local, interessando-se pelo referido prato, solicita a receita e descobre que alguns dos ingredientes não existem no Brasil, e, mesmo assim, consegue os ingredientes e volta ao Brasil, onde resolve reproduzir o prato, mas se propõe a algo mais, ou seja, resolve inventar um novo prato, que embora contenha ingredientes africanos não lembra nenhum prato conhecido na África.
Portanto é um prato brasileiro. Assim é o Candomblé, pois mesmo considerados os elementos simbólicos e religiosos africanos (ingredientes) é resultado do processo histórico na diáspora, é síntese da inventividade dos partícipes. As palavras inventividade e recriação são fundamentais à compreensão do papel do negro escravizado ou liberto na diáspora.
O Candomblé agrega territorialmente elementos que no território africano eram dispersos e objeto de cultos locais e até isolados. Muniz Sodré nesse sentido afirma:

Do lado dos ex-excravos, o terreiro de (de candomblé) afigura-se como a forma social negro-brasileira por excelência, por que além da diversidade existencial e cultural que engendra, é um lugar originário de força ou potência social para uma etnia que experimenta a cidadania em condições desiguais. Através do terreiro e de sua originalidade diante do espaço europeu, obtêm-se traços de fortes subjetividade histórica das classes subalternas no Brasil (SODRÉ.1988,p.18)

Retomando o conceito de comunidade-terreiro, percebe-se que a mesma implica além da junção de elementos dispersos e distantes, uma nova concepção de comunidade, que agrega vivos e mortos, implica em uma relação de troca entre os vivos e os ancestrais, entre deuses e seres humanos, implica ainda em uma visão de ser humano que negocia com os deuses e ancestrais uma boa vida na terra, uma vida alegre, criativa e em constante movimento, pois para o Candomblé nada é estático, tudo é movimento, tudo é troca constante.
A idéia de movimento remete a um dos elementos mais importantes do Candomblé, que a figura de Exu, senhor do movimento sem fim, é responsável pela existência dinâmica da realidade, tudo muda, seres humanos, árvores, pedras, todos são parceiros em uma relação que é dada pela dimensão de um jogo cósmico. As possibilidades vão sendo construídas e destruídas o tempo todo. O segredo da regra do jogo encontra-se na palavra acerto, ou seja, acertar um ponto, fechar um acordo, alterar uma situação, enfim simular e dissimular a realidade. Uma grande figura do Candomblé, o professor Agenor Miranda da Rocha , dizia com propriedade: Candomblé é um sistema cuja base é Exu.
Assim sendo, na impossibilidade de um ponto fixo de referência, e de uma conversão à uma verdade eterna e imutável, como caminha a civilização ocidental
desde Platão, o Candomblé acena sempre com a possibilidade de se mudar o mundo e o destino. Busca-se enganar a morte, nem que seja por uma vez. O candomblé não se prefigura como um espaço de conversão à uma única verdade. Pertencer a uma comunidade-terreiro não exige o pressuposto da adesão a verdade, basta estar ali. Em uma festa ou cerimônia pública não se pergunta se a pessoa acredita ou não na divindade presente, ou nos princípios ali vigentes.
Os deuses existem independentemente da fé. Deve se entender Candomblé como um espaço de enfrentamento do projeto universalista da civilização ocidental. Na comunidade-terreiro o homem é capaz de estabelecer uma relação de troca sem que sobre um resto a ser apropriado economicamente e em favor de algum grupo
dominante .
A comunidade-terreiro recria a referência territorial-comunitária perdida em razão da escravidão. Os negros e seus descendentes reconstituem possibilidades de enfrentar o mundo que lhes é hostil e adverso.
Candomblé e Modernidade – considerações finais
O Candomblé, embora não se possa dizer que esteja fora da modernidade, implica em pontos de enfrentamento a esse projeto de ocidentalização do mundo pela lógica do mercado. Alguns aspectos da comunidade-terreiro apontam na direção de negar a modernidade. Entre esses pontos podem ser destacados: a relação com o corpo, que deixa de ser uma mercadoria, a impossibilidade da reprodução ad infinitum dos bens, a relação com o tempo e com o espaço.
A crença na palavra do pai fundador que se traduz no culto à ancestralidade, o reforço do sentido coletivo do agir humano que se choca frontalmente com o individualismo moderno; a crença no movimento constante da vida e dos homens, a crença na palavra e a desnecessidade de contratos escritos para garantir o cumprimento de um acordo e finalmente a negação de um dos sentidos da existência, a noção de axé. Para os adeptos do Candomblé a vida é um ato de alegria que se perpetua entre os parceiros do cósmico. Mas viver o hoje não implica uma visão pós-moderna de vida, um imediatismo infrutífero, mas sim, uma relação de ética comunitária, a felicidade de um deve estar imbricada com a felicidade de todos. Afinal isto é Candomblé.


Referências Bibliográficas
SODRÉ,Muniz, A verdade seduzida: Por um conceito de cultura no Brasil: Rio de Janeiro,CODECRI, 1983.
___________, O terreiro e a cidade: A forma social brasileira, Petrópolis: Vozes,1988.

Da lei à ética

 
02/12/2010 - Da lei à ética

Da lei à ética

Por Kássio Motta
Certa vez ouvi de uma docente, participante da Formação de A Cor da Cultura, que era direito dela – ainda que tivesse consciência da discriminação racial vigente na sociedade brasileira – não querer se colocar “nesse lugar” – isto é, o lugar do Outro, lugar do discriminado, como sugeria a atividade. A professora foi, então, lembrada de que o projeto se realiza como uma forma de ação afirmativa, promotora do reconhecimento e da elevação de autoestima da população afrodescendente, amparada na legislação que torna compulsório o ensino de História e Cultura Afro-brasileiras.
Infelizmente, mesmo na esfera da educação, ainda precisamos recorrer à Lei Nº 10.639/03 para justificar iniciativas relacionadas à desconstrução das categoriais raciais que organizam o imaginário e os espaços sociais brasileiros. Infelizmente, precisamos da regulação legal para fazer com que percebamos o quanto estávamos, estamos, e, certamente, estaremos, ainda que por algum tempo, envoltos pela vergonhosa discriminação racial.
Mas, afora a legislação, o individualismo não nos permite perceber o quanto antiéticos, portanto também discriminatórios, são certos posicionamentos, enunciados e práticas. Tão naturalizados, irrefletidos, quase reflexos, incorporados, que não nos damos conta do que falamos, fazemos, do modo como olhamos ou reagimos frente às diferenças.
Precisamos recorrer menos à Lei e mais à ética, às práticas que gerem o bem comum, que superem o individualismo e ampliem o olhar para o entorno, para o mundo, para os Outros e para nós mesmos. Devemos olhar para nós mesmos não de forma ensimesmada, mas, sim, dentro do contexto social. Um olhar que nos permita enxergar a riqueza da diversidade humana e experienciar a alteridade. Como afirmou Paulo Freire, que possibilite compreendermo-nos como “um ser de relações num mundo de relações” (FREIRE, 1992).
Portanto, mesmo que não se sinta pertencendo ao “lugar” do discriminado, ao enxergar as desigualdades e injustiças, o ser humano, esse ser de relações, tem o dever de agir contra elas, em prol de uma sociedade brasileira mais justa e equânime.
Se entendemos a escola como um espaço de crítica às relações sociais – principalmente às étnico-raciais –, a plenitude do sistema educacional só será alcançada quando a escola for um espaço promotor de conhecimentos e transformação das injustiças e desigualdades sociais vigentes (BRASIL, 2004).
Mas não bastam a criticidade, a reflexão, a geração de conhecimentos e as transformações. Temos que potencializar nossa dimensão ética, que Regina Migliori denomina como competência amorosa.
“Uma forma de inteligência vinculada àquilo que a sabedoria universal traduz como valores humanos universais.
Os valores humanos nos levam a reconhecer a riqueza da diversidade oferecida por uma realidade complexa e complementar. Nosso agir no mundo passa a respeitar as diferenças numa perspectiva que inclui conhecimento e amor, competência e sensibilidade. Daí a importância de estabelecermos um circuito transdisciplinar não só entre as diversas áreas de conhecimento, mas também entre as múltiplas dimensões humanas e suas próprias formas de produzir conhecimento.” (MIGLIORI, 2008).

É justamente na direção da transdisciplinaridade entre as áreas do conhecimento e entre as múltiplas dimensões do ser que foi pensado o projeto A Cor da Cultura. Com base nos Eixos Temáticos (ET) do Ministério da Educação, nos Pilares da Educação (PE) da Unesco e nos Valores Civilizatórios Afro-brasileiros (VC) a metodologia privilegia a acolhida, o diálogo e a alteridade.
Ao trabalhar o ser humano como ser de múltiplas dimensões, a metodologia procura valorizar todas as formas de produção de conhecimento, sejam elas afetivas, sensitivas, emocionais, espirituais. E não somente as racionais, no sentido mais limitado do termo. Por meio de uma série de atividades lúdicas, dinâmicas de grupo e plenárias sobre os temas propostos, a metodologia promove um diálogo de respeito às diferenças, em que a alteridade é constantemente incentivada.
Essa perspectiva metodológica compreende que o conhecimento deve ser construído e reconstruído, processualmente e continuamente (ET). E, sobretudo, coletivamente, valorizando os saberes e experiências individuais. Nessa dialética de expressar a própria opinião, ouvir as contrárias e tecer uma terceira, uma quarta, uma outra opinião, os participantes devem aprender a ser (PE)
“para desenvolver, o melhor possível, a personalidade e estar em condições de agir com uma capacidade cada vez maior de autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. Com essa finalidade, a educação deve levar em consideração todas as potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se” (UNESCO, 2010).  

Assim, o projeto A Cor da Cultura trabalha alguns valores civilizatórios afro-brasileiros, como a oralidade, a ludicidade, a memória, a circularidade – no infindável processo de construção e reconstrução de conhecimentos –, e, por que não dizer, o Axé, uma vez que sendo força vital está presente em tudo e em todos os seres – imagine no processo de aprender a ser, quando precisamos também aprender a conviver (PE). E conviver pressupõe respeito às diferenças, como, por exemplo, aos diversos saberes e fazeres dos educandos e aos distintos tempos pedagógicos de cada um, pois todos aprendem em tempos e ritmos diferentes (ET).
Uma pedagogia da diversidade precisa, não só promover o respeito à diferença, mas, principalmente, encorajar o cooperativismo e o comunitarismo (VC), para efetivamente gerar uma aprendizagem inclusiva (ET), não apenas em termos de diversidade metodológica e avaliativa, mas de coparticipação.
Por fim, a metodologia desenvolvida em A Cor da Cultura pressupõe uma gestão participativa e que tenha como referência a elaboração coletiva do Projeto Político Pedagógico (ET), que pense a diferença como complementaridade e possibilite a circularidade (VC) de ensinaraprenderensinar.
Para além do conhecimento sobre História e Cultura Afro-brasileiras, A Cor da Cultura visa a despertar em educadores(as) e educandos(as) uma disposição de aprender a conhecer, de aprender a aprender (PE) em “todas as oportunidades oferecidas pela educação ao longo da vida” (UNESCO, 2010).
Somente ao desenvolvermos esta amplitude cognitiva poderemos romper com os antolhos que formatam uma visão discriminatória. Percepção estreita que presume a discriminação racial atingindo apenas um “lugar” social. Um locus ao qual pertence, exclusivamente, o Outro. Precisamos despertar para os desajustes que a discriminação impinge também aos discriminadores, que supervalorizam-se rebaixando sistematicamente o diferente.
Ao reconhecer a realidade de discriminação racial em que vivemos, é preciso atuar para transformá-la. Não fazê-lo é uma evidência concreta de que algum benefício se tira da situação em que nos encontramos. E por isso, a resistência à mudança. Mudar, por exemplo, no sentido de reconhecer que muitas vezes aquilo que, orgulhosamente, classificamos como mérito é, de fato, um privilégio (BENTO, 2003). Ou seja, em vez de conquistas por merecimento, obtêm-se “conquistas” por regalias e a vantagens em detrimento de outros. Esse desvirtuamento não pode ser benéfico a ninguém.
Com a finalidade de expor como o racismo e a discriminação racial afeta a todos, o projeto A Cor da Cultura cria uma tecitura com Eixos Temáticos, Pilares Educacionais e Valores Civilizatórios Afro-brasileiros. Uma trama metodológica cujas costuras são falas, sentimentos, ideias, anseios, memórias, reflexão e autorreflexão. Um espaço para se perceber ligado ao mundo e ao Outro, pois
“a pessoa que se abre para si mesma, para o outro e para o mundo, construindo relações autênticas e um olhar crítico sobre a realidade, inaugura com essa abertura a relação dialógica” (LOUREIRO apud GUSTSACK, 2008).

Ao formar educadores para abordar a temática étnico-racial em sala de aula, A Cor da Cultura rompe com a indiferença e desperta o potencial ético dos participantes. Intenta fazer com que todos percebam que têm a responsabilidade de intervir em qualquer “lugar” de discriminação, pois se a Humanidade é una, reduzir ou permitir que se reduza a humanidade do Outro é reduzir-se a si próprio.
  
Legenda
ET - Eixos Temáticos do Ministério da Educação
PE - Pilares da Educação da Unesco
VC - Valores Civilizatórios Afro-brasileiros A Cor da Cultura 
 Kassio Motta é mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense, Pesquisador do Laboratório de Etnografia e Estudos em Comunicação, Cultura e Cognição - LEECCC/ UFF.
 

Referências bibliográficas
BENTO, Maria Aparecida Silva. Branquitude: o lado oculto do discurso sobre o negro. In CARONE, Iray e BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Conselho escolar e o aproveitamento significativo do tempo pedagógico/elaboração. Ignez Pinto Navarro et al. – Brasília: MEC, SEB, 2004.
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 10ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
GUSTSACK, Felipe. Dicionário Paulo Freire. STRECK, Danilo R., REDIN, Euclides, ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
MIGLIORI, Regina. Ser Sustentável – uma nova consciência em educação. Disponível em <http://www.migliori.com.br/artigos_folha.asp?id=6>, Acesso em 26/10/2010.
PIZA, Edith. Porta de vidro: entrada para a branquitude. In CARONE, Iray e BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
UNESCO. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. Brasília: ED.96/WS/9, 2010.

A lei 10.639/03 contra o racismo intelectual

 
11/02/2011 - racismo

A lei 10.639/03 contra o racismo intelectual

Por Amauri Mendes Pereira

“Foi em Diamantina, onde nasceu JK, que a princesa Leopoldina arresolveu se casar / Mas Xica da Silva tinha outro pretendente, e obrigou a princesa a se casar com Tiradentes / (...) Da união deles dois ficou resolvida a questão, e foi proclamada a escravidão / E assim se conta essa história, que é dos dois a maior glória / Dona Leopoldina virou trem, D. Pedro é uma estação também" ("Samba do crioulo doido", de Stanislaw Ponte Preta
Samba do Crioulo Doido
Stanislaw Ponte Preta

Nos anos 70, Sergio Porto/Stanislaw Ponte Preta, escritor e humorista, fez um enorme sucesso com o “Samba do crioulo doido”, uma piada sobre a (in)capacidade intelectual e a (não)lucidez do compositor de escolas de samba. Assolado por informações vistas como fora de seu horizonte cultural, ele não consegue dar conta: e “acontece” um samba sem pé, nem cabeça, misturando feitos e personalidades históricas de maneira desconexa e aleatória.
O prestígio daquele autor impôs um silêncio constrangido a muita gente. Era evidente a racialização: afinal também há compositores brancos no mundo do samba. É também flagrante a insensatez da “piada”: compositor “pirado”? Ao contrário, o comum é lembrar com facilidade de grandes sambas enredo nas Escolas de Samba, mesmo os não vencedores, que não chegaram “à avenida”.
Por que foi fácil para aquele intelectual fazer a piada racista? Primeiro porque ele podia fazê-la: sua expressão era assegurada em coluna regular de importante jornal de circulação nacional. Segundo, que no país da democracia racial ele tinha liberdade para isso, pois ninguém é racista: era apenas uma brincadeira... Terceiro, porque ele não conhecia, ou conhecia pouco o mundo do samba, para saber do cuidado com a criação artística, poética, e o lugar especial que têm naqueles contextos. O que se passa de existencialidades e sociabilidades nos “meios negros” em quase todas as regiões brasileiras é pouco conhecido, e quase sempre estereotipadamente,. Apesar de espaços comuns a brancos e negros, sempre houve um viés “racial” na segregação social.

Enfim, a pretensão aqui é argumentar que a lei 10.639/03 vem para ajudar nesse tipo de situação. Tirando-se a Historia e Cultura Afro-Brasileira da culturalização e folclorização – o gueto em que foi confinada – impõem-se rearranjos teóricos e éticos de máxima relevância. De saída, é imperativo problematizar a naturalização da “brincadeira racista”: como não perceber, agora institucionalmente, já que o bom senso não conseguiu se impor, que racialização só é “uma coisa a toa”, uma “brincadeira” para quem racializa, não para quem é racializado? Outra coisa, ainda aproveitando o exemplo: é notável a contribuição de alguns intelectuais que se dedicaram a conhecer o mundo do samba: é comum encontrar-se em seus textos, embora nem sempre analisadas, a multiplicidade de dimensões (política, econômica, e outras) dos processos sociais que instituíram, tantas vezes “a ferro e fogo”, as manifestações culturais de matrizes africanas, sua historicidade, sua simbologia, sua estética, como elementos centrais na formulação da identidade nacional brasileira. Ou seja, o mundo negro, que pode ser apresentado através do “guarda chuva conceitual” História e Cultura Afro-Brasileira, que nos perdoe Sergio Porto, autor de obra admirável sob vários aspectos, não cabe em estereótipos: é muito mais!
 Justiça seja feita
Durante anos o Movimento Negro Brasileiro capitaneando redes mais amplas da luta contra o racismo bradou pela democratização dos currículos educacionais: História da África! História social do povo negro! Respostas: de um lado os eternos “ingênuos”: “Por que a história do negro? Por acaso temos uma história do branco?” Ou “Por que história e cultura afro-brasileira se somos um povo miscigenado?” De outro, se acumulavam pesquisas particularmente na área da Educação: sobre os prejuízos causados pelo preconceito racial à qualidade do ensino, e à formação intelectual e da consciência social cidadã dos nossos estudantes, pelas omissões e/ou distorções (quase sempre as duas coisas) reproduzidos em livros, conteúdos e procedimentos pedagógicos.

Educadores demandavam cursos a respeito desses temas. Além da busca de enriquecimento intelectual, valia a pena mergulhar naquele magma de vivências (“saber” é pouco-só vale se for vivência) de que se ouve falar! Seria bom demais encantar aulas com a sensibilidade e profundidade que extravasa em conhecimentos e mitologias, cores, cânticos e sonoridades, danças e movimentos, jeitos e trejeitos, no imaginário recheado de significações inconsúteis! Mas ansiavam, também, por preparo para lidar com situações “constrangedoras”, “conflituosas”, “difíceis”, etc, geradas por “incompreensões” e “brincadeiras”: manifestações de preconceito e discriminação racial no cotidiano escolar. Por que não se falava “disso” na formação de professores? Só excepcionalmente e desafiadoramente um-a ou outro-a professor-a, versado-iniciado-a, tomava a iniciativa e promovia palestras, exposições de vídeos e de manifestações culturais, debates, etc.
 Agora é Lei!
Mas atenção: não se trata de, mais uma vez, exercitar piedade. Fora com a vitimização e a auto-vitimização. A Lei não é para o negro. A Lei é para todos/as. É crucial, tanto expurgar a auto-estima rebaixada pelo sentimento de inferioridade (que aflige mais a negros-as), quanto a auto-estima inflacionada pelo sentimento de superioridade (habitualmente incorporada por brancos-as). Uma coisa não acontece sem a outra: são gêmeas e terríveis as distorções na formação da consciência social, derivadas de preconceitos e estereótipos raciais, inoculados desde tenras idades, em famílias de todas as cores, despreocupadas/desinteressadas/indiferentes à questão racial. Não existe, portanto, um problema dos negros. É perniciosa a inocência/conveniência do “branco” que se coloca “de fora”: finge que não percebe as vantagens materiais e simbólicas para os mais claros, de cabelos lisos, etc.

A lei oferece à sociedade a oportunidade da se repensar. Esvaziar a idéia comum e imobilizadora, de que “a questão é só de classe social”, e de que são seus próprios problemas psicológicos que criam complexos e recalques, que ainda assolam muitas crianças, jovens, homens e mulheres negras: Isso que existe, mas não é causa, e sim conseqüência do racismo.

A implementação da Lei alerta, também, para o risco de se perpetuar – agora com mais pesquisa e informações – o gueto conceitual e historiográfico que trata da trajetória da população negra. Como se História e Cultura Afro-Brasileira não fosse História do Brasil. Aqui tudo aconteceu muito mais intensamente do que em qualquer das nações mais extensas criadas no novo mundo: aqui chegou quase a metade de todos os seres humanos vindos no tráfico Atlântico; aqui começou a escravidão nas Américas e foi o último lugar onde acabou; e só aqui houve escravidão – e luta contra a escravidão – em todo o território nacional. Como pode esse peso demográfico, essa longevidade histórica, essa capilaridade territorial e cultural, ser vista nas interpretações mais influentes sobre a formação e desenvolvimento da sociedade brasileira, como meras contribuições. Toda densidade das ações, enunciações, corpos e almas da gente negra, reduzidos a apêndices, “encaixados” numa História do Brasil caiada, como ironizou José Honório Rodrigues (1964). Numa interpretação isenta de racialismo isso é incabível.

Às-aos Agentes da Lei, cabe mostrar como tudo seria diferente se a partir da república a lei tivesse sido pra valer! Ao invés disso foi vitorioso o projeto racial de nação, de Estado nacional e de sociedade. Homens de ação, pensadores e instituições mais ilustres e poderosos eram reféns das doutrinas do “racismo científico”, dominantes na Europa do século XIX: daí a colossal política pública do nascente Estado Republicano ter sido racial – a imigração: foram trazidos para o Brasil mais imigrantes europeus em pouco mais de 35 anos, quanto africanos em 350 [
1].  Como não explicitar a evidência de que as classes dirigentes pretendiam “lavar a mancha negra”, “depurar o mascavo nacional [o sangue negro]”, realizar uma “redução étnica” ou um “genocídio pacífico” – em outras palavras, substituir a população negra como mais forte marca demográfica, social e cultural?[2]. Não é pouco o trabalho das-dos Agentes da Lei. Sua práxis se inscreve em novo tempo: Pelourinhos, mordaças, correntes, dores sem fim, fechamentos, resistências e reatividades, já tiveram seus usos para a dominação e para as denúncias e lutas contra a dominação. Hoje são outras as ferramentas da dominação e outras serão as de efetiva libertação. Celebrar o presente e a ação transmutando tudo que já há em Cultura de Consciência Negra: superação permanente, deliberada e consistente dos preconceitos, estereótipos, lugares concedidos, favores, concessões, “reconhecimentos” – sem limites raciais aos sentidos de Justiça Social, Cidadania, Democracia.


 [1]Decreto-lei n° 528. 28.06.1890. “É inteiramente livre a entrada nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal de seu país, exceptuados os indígenas da Ásia e da África.” Constantino Ianni (1966) fala em cerca de 4 milhões, maioria italianos. 

          [2]Trabalhos como os de SEYFERTH e VAINER, citados, mostram a centralidade do racialismo no pensamento social brasileiro, e na política de imigração colonização entre os finais do século XIX  e meados do século XX.

Bibliografia
IANNI, Constantino. Homens sem paz: os bastidores da emigração italiana. Editora Civilização Brasileira.RJ. 1966.
RODRIGUES, José Honório. Brasil e África Outro Horizonte. Civilização Brasileira. RJ. 1964
SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In Raça, Ciência e Sociedade. CHOR MAIO, Marcos e VENTURA SANTOS, Ricardo. FIOCRUZ/CCBB. RJ. 1996
VAINER, Carlos. Estado e raça no Brasil: notas exploratórias. Estudos Afro-Asiáticos n° 18. RJ. 1990

Amauri Mendes Pereira é professor de Sociologia da UEZO-RJ

Origens e significados do termo raça

 
12/05/2011 - Lei 10.639/03

Origens e significados do termo raça



Maria Clareth Gonçalves Reis
Doutora em Educação pela UFF
Pesquisadora Associada do NEAB/UFJF 
Capacitadora do projeto A Cor da Cultura
1. Introdução

Este artigo baseia-se nas necessidades observadas durante os cursos de formação de professores para trabalhar com a Lei 10.639/03. Lei que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileiras, História da África e dos africanos nos estabelecimentos de ensino públicos e privados.
Tive a oportunidade de conhecer um pouco o perfil de professores/as de alguns estados brasileiros, dentre eles: Mato Grosso do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Paraná, etc. Nessas ocasiões, percebi que parte significativa dos participantes desconhece a base do pensamento racista que, consequentemente, originou o racismo. A ideologia de superioridade e inferioridade entre os grupos humanos ainda permanece ativa em muitos pensamentos. Diante disso, surgiram algumas indagações: por que essa ideologia ainda está presente no pensamento de muitas pessoas? Como ela foi historicamente construída? E, conforme foi anunciado no Caderno 2, de Metodologia, da Cor da Cultura, “desvendar alguns conceitos, pode nos ajudar a rever nossos “pré-conceitos” (Brandão, 2006, p. 20). Daí, a necessidade de se conhecer a origem dos termos raça e racismo.
Inicialmente, é necessário entendermos a gênese da ideia de raça, base do pensamento racista, e de onde se originou a ideologia de superioridade e inferioridade racial. Na concepção de Quijano (2000), a origem está no nascimento da América e no surgimento do capitalismo colonial/moderno e eurocentralizado, como um novo padrão de poder mundial. Uma das marcas fundamentais desse padrão de poder é a “classificação social da população mundial a partir da ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial” (p. 1). A partir daí, essa ideia teve grande repercussão e influência nas formas de poder e domínio mundial.
A partir de estudos de evolução biológica do século XIX aplicou-se o conceito de raça à humanidade, marcando a relação de superioridade e inferioridade entre colonizadores e conquistados. Tal concepção justificou as respectivas relações de dominação. Essa classificação racial (que atribuía aos colonizadores o poder de separar a população entre “superior” e “inferior”) não ficou restrita à América. Expandiu-se por todo o mundo, criando novas identidades sociais (índios, negros, mestiços) e redefinindo outras.
Assim, o advento da ideia de raça na América legitimou as relações de dominação europeia. Ideia falsificadora da realidade, mas que justificava a visão eurocêntrica do conhecimento; supremacia cultural a partir de um modelo que se julgava hegemônico não só na Europa, mas fora dela, desrespeitando a diversidade cultural existente em outras sociedades.
Paralelamente ao surgimento dessa perspectiva, teorias sobre raça são elaboradas para justificar e naturalizar as relações coloniais. Isto é, pré-conceitos com status de ciência para explicar as relações entre dominadores e dominados sob a falsa ótica de superioridade e inferioridade entre seres humanos. É o que veremos a seguir.

2. O debate em torno das teorias raciais no século XIX
Neste texto, a prioridade de análise é dada ao século XIX, pois é o período marcante da discussão sobre o significado e o uso do conceito de raça. Ao fazer este debate, tenho ciência da sua complexidade e da impossibilidade de esgotá-lo. Mas, ao mesmo tempo, para entendermos o racismo presente em nossa sociedade precisamos compreender a ideia de raça, seu significado, por quem foi usado e ainda o é, e qual o seu papel nas políticas sociais e educacionais.
A utilização de teorias raciais, em cada momento histórico, não ocorreu de forma aleatória, já que cada uma delas apresentava intenções e objetivos bastante definidos. Nesse contexto, o antropólogo Kabengele Munanga discute raça, partindo do pressuposto de que os conceitos têm uma historicidade através da qual podemos melhor compreender o seu significado. Alerta ainda que conceitos são objetos de manipulação política e ideológica, sendo necessário o máximo de atenção em sua análise para perceber sua eficácia em retratar a realidade contemporânea.
Ainda, segundo esse autor, raça já teve vários significados ao longo da história. Foi utilizada para classificar espécies (animais e vegetais); como referência de “pureza” de sangue por meio da expressão “raça nobre”; para classificar a diversidade humana, apoiando-se na tese do determinismo biológico. Através da antropometria, teve o objetivo de analisar os aspectos externos da raça e do seu potencial criminal para descobrir os criminosos, antes mesmo da prática do crime; tentando provar que a mestiçagem produz raças degeneradas e a superioridade da raça branca sobre as demais, etc.
O debate sobre a origem da humanidade prosseguiu no século XIX, através das versões: monogenista e poligenista. A primeira perdurou até a metade desse século e acreditava que a humanidade era una, isto é, surgira de um só núcleo de criação e dele se expandiu. Em contraposição, a segunda versão, poligenista, defendia a existência de vários núcleos de criação e que estes estariam relacionados às diferenças raciais observadas. Independentemente de uma análise mais aprofundada sobre essas teses, a verdade é que a segunda versão propiciou o avanço de uma interpretação biológica sobre os comportamentos humanos, sendo estes compreendidos a partir de leis biológicas e naturais.
Segundo Skidmore (1976), a partir de 1860 as teorias raciais obtiveram plena aceitação nos Estados Unidos e na Europa. Diz ainda o autor que durante o século XIX surgiram três grandes escolas de teorias raciais: a primeira foi a etnológico-biológica. Nesta escola, a poligenia (criação das raças humanas através de mutações diferentes das espécies) teve grande influência. “A base de seu argumento era que a pretendida inferioridade das raças – indígena e negra – podia ser correlacionada com suas diferenças físicas em relação aos brancos; e que tais diferenças eram resultado direto da sua criação como espécies distintas” (p. 66).
Por sua vez, o suíço Louis Agassiz foi um dos teóricos que mais se apossaram dessa versão, utilizando-a na defesa da superioridade da raça branca sobre as demais. Para ele, as diferentes espécies (ou raças) estariam relacionadas às diferenças climáticas. Assim, essas suposições apontavam a raça branca como superior, tanto em qualidades mentais quanto sociais, demonstrando, inclusive, a capacidade de “criar civilizações”. Para os demais estudiosos dessa versão, esses argumentos tinham base científica; portanto, deveriam ser aceitos como um fato inquestionável. 
Entretanto, essa teoria foi substituída pela teoria de Charles Darwin. Numa viagem de cinco anos ao redor do mundo, o arguto senso de observação de Darwin permitiu-lhe colher dados sobre a adaptação das diferentes espécies animais e vegetais ao seu meio ambiente. A partir daí, construiu a Teoria da Evolução. A sua reflexão foi apropriada pela classe dominante burguesa, aplicando-a mecanicamente à história social humana, vindo justificar o imperialismo, a guerra, o domínio do europeu sobre o resto do mundo, “do mais forte sobre o mais fraco, do mais adaptado ao menos adaptado” (SCHWARCZ, 1993, p. 80). É o chamado “darwinismo social”.

              A segunda escola do pensamento racista, a escola histórica, surgiu nos Estados Unidos e na Europa, porém, demonstrou-se influente também no Brasil. Os pensadores dessa corrente partiam do pressuposto de que as diversas raças humanas poderiam ser diferenciadas umas das outras, e que, no entanto, a raça branca seria, indiscutivelmente, superior às demais. Gobineau, um dos representantes dessa ideia, contribuiu com a divulgação do pensamento determinista, afirmando que o fator determinante da história humana era a raça. Defensor ardoroso da pureza das raças, Gobineau argumentava sobre a “raça suprema ariana”, “produtora exclusiva de civilização e sobre a associação entre a mestiçagem e a decadência (supondo que a mistura de raças ‘desiguais’ conduz à degeneração de um povo)” (SEYFERTH, 2002, p. 19). Para ele, o surgimento das grandes civilizações decorreria da conquista das raças inferiores. Assim, a abordagem histórica teve como marca principal o culto ao arianismo.
A terceira escola do pensamento racista intitula-se determinismo biológico. Para DaMatta (1987), no determinismo biológico “as diferenciações biológicas são vistas como tipos acabados e que cada tipo está determinado em seu comportamento e mentalidade pelos fatores intrínsecos ao seu componente biológico” (p. 71). Ou seja, ele é imutável pela ação social, tirando a responsabilidade da sociedade, já que são os elementos herdados por cada indivíduo que determinam, desde o seu nascimento, o que ele será futuramente: um agricultor, um desempregado, um burguês ou um mendigo, sem que ninguém possa intervir nesses resultados. Assim, esse determinismo é usado para justificar a superioridade e o domínio de uma raça sobre outra.
Todas essas teorias racistas foram muito bem aceitas e utilizadas pelos teóricos brasileiros do século XIX, dentre eles, Silvio Romero, Nina Rodrigues, Oliveira Viana e João Batista Lacerda. O antropólogo Nina Rodrigues, por exemplo, um dos nomes mais destacados entre os doutrinadores racistas da época, não via a mistura das raças como algo positivo para o Brasil. Através de seus estudos sobre a influência do africano no Brasil, realizado na Bahia na década de 90 do século XIX, ele detectou a inferioridade do africano a partir de seus parâmetros científicos. Sua teoria foi aplicada em seu trabalho de medicina legal, afirmando que “as características raciais inatas afetavam o comportamento social e deveriam ser levadas em conta por legisladores e autoridades policiais” (Da Matta, 1987, p. 76).
Assim, na concepção de Nina Rodrigues, a raça negra não poderia ter tratamento equivalente à raça branca. Ele se opunha veementemente à crença de que o Brasil se tornaria branco através do processo de miscigenação, tese defendida por João Batista Lacerda a partir da teoria do branqueamento. Na opinião de Lacerda, a mestiçagem seria um fenômeno inevitável. Assim, “a melhoria da raça brasileira, através da miscigenação das raças inferiores com o branco, iria produzir no Brasil, ao cabo de 100 anos, o total embranquecimento da população” (LOBO, 2000, p. 72). Para isto, o incentivo à imigração europeia para o Brasil seria fundamental.
Essa também era uma proposta da eugenia (eu: boa, genus: geração), criada em 1883 pelo britânico Francis Galton, com o objetivo de difundir a eliminação das raças inferiores, intervindo, sobretudo, na reprodução das pessoas e nos casamentos inter-raciais. Segundo esse pensamento, era necessário, através dessas práticas, encontrar um maior equilíbrio genético para aprimorar as populações, identificando os traços físicos que apresentassem grupos sociais indesejáveis. Os eugenistas diziam que o problema não se resumia à questão do negro e do mestiço, o que os preocupava era a obtenção de pessoas sadias, evitando-se a reprodução daqueles que pudessem degenerar a raça. No entanto, negros, mestiços e pobres eram os principais responsáveis tanto pela sua miséria material e moral quanto pela degeneração da espécie.

3. Considerações finais
Embora o conceito biológico de raça tenha sido desconstruído cientificamente, nos dias atuais, muitas pessoas ainda acreditam que os negros são inferiores aos brancos, e devem ocupar um lugar específico, sem possibilidade de mobilidade na sociedade. Assim, as marcas deixadas pela antropometria, pela ideologia do “sangue puro”, pela classificação da espécie humana através da cor da pele e pelas características morfológicas (ou seja, a raça no sentido biológico) ainda persistem nas atitudes de grande parte da população mundial. E, nessas atitudes, percebemos a manifestação do racismo, fruto da construção histórica de raça.
Para Seyferth (2002), “como conceito, racismo diz respeito às práticas que usam a ideia de raça com o propósito de desqualificar socialmente e subordinar indivíduos ou grupos, influenciando as relações sociais” (p. 28). Nessa perspectiva, o racismo é uma ideologia que atinge não somente a população negra, mas todas as populações (judeus e árabes, por exemplo) que em diferentes épocas e contextos são tratadas de forma diferenciada e desigual.
Enfim, o racismo atua também na crença do poder, da autoridade, do controle de um grupo que se vê como superior aos demais. Nesse sentido, é necessário estudar e compreender a origem tanto de raça quanto de racismo para evitar que elementos da sua versão biológica permaneçam criando desigualdades e, a partir daí, possamos estabelecer novas relações sociais equânimes.

4. Referências bibliográficas
BRANDÃO, Ana Paula (coord.). Saberes e Fazeres, modos de sentir. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, v. 2, 2006. (Projeto A Cor da Cultura).
DAMATTA. Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
LOBO, Lilia Ferreira. Racismo e controle social no Brasil: a psiquiatria e os saberes competentes. In: BRANDÃO, André Augusto (org.). Programa de Educação do Negro na Sociedade Brasileira. Niterói: EdUFF, 2000. (Cadernos PENESB; 5). 
I SEMINÁRIO DO II CONCURSO NEGRO E EDUCAÇÃO, 2001. Rio de Janeiro. ANPED. MUNANGA, Kabengele. Conceitos e categorias na área do Negro e Educação.
QUIJANO, Aníbal. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Publicado em Lander, Edgardo (comp.). Bs.As. CLACSO, 2000.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SEYFERTH, Giralda. Racismo e o ideário da formação do povo no pensamento brasileiro. In. OLIVEIRA, Iolanda (org.). Relações raciais e educação: temas contemporâneos. Niterói: EdUFF, 2002. (Cadernos PENESB; 4).
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro; tradução de Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

Religião, religiosidade e educação

 
11/07/2011

Religião, religiosidade e educação

Por Jurema Nunes e Monica Valéria

O sagrado constitui uma categoria universal da experiência humana. Uma das formas de relacionar-se com essa categoria é através do que conhecemos por religião. A religião e a noção de religiosidade estão entre nós desde sempre. A experiência religiosa, dizem alguns, está na base da ação social e dá-lhe sentido. Religião seria o resultado do que somos capazes de registrar em relação ao inefável e religiosidade seria a disposição do indivíduo para integrar-se às coisas sagradas. Advindo do latim, re-ligare, pode ser um conjunto de práticas e crenças relacionadas com o transcendental, que tem como elementos derivativos os rituais, os códigos e as leis morais. Enquanto algumas encontram a base de tais códigos e leis nos dogmas, outras têm preceitos e interdições.

A religião dá-nos, através dos ritos, mesmo que mínimos, uma noção de segurança - um como se - que transforma o mundo ameaçador e enigmático - como diria Bronislaw Malinowski (1884-1942), um dos fundadores da antropologia social. A religião é um fenômeno social e individual, inextricavelmente ligado a outros aspectos da cultura e da sociedade. Um exemplo disso é o fato de que, embora hoje, em África, as religiões tradicionais representem uma porcentagem menor que segmentos cristãos e islâmicos, ainda persiste a ideia de que “nascer, casar e morrer” tenha que ser permeado por tais tradições de alguma forma.

O cerne das religiões tradicionais do continente africano é, ao que parece, a criatividade e a emoção – importante legado para nossa afro-brasilidade. Afirma-se que a religiosidade tradicional de África possui uma interação muito flexível e fluida no ambiente institucional no qual opera. Os africanos em diáspora foram capazes de criar e recriar expressões de sua religiosidade tradicional em várias situações, reagindo a mudanças, perigos e possibilidades. A religião não está longe da ideia de oficio, tendo seu foco central na ação. Parte de uma estratégia de sobrevivência, de estar no mundo, de corporeidade no chão que se pisa, servindo a fins práticos, imediatos ou remotos, sociais ou individuais. O que não exclui possibilidades de contato com o transcendental. Velhos significados são remontados em novas formas e sentidos possíveis em cada realidade. Essa transformação foi fundamental na desenvolvimento da maioria das manifestações religiosas das Américas. Sendo primordialmente voltada para o grupo, as experiências coletivas e individuais são expressas na vivência da comunidade religiosa.

Nei Lopes afirma: “embora as religiões negro-africanas tenham suas peculiaridades, todas comungam de uma ideia central, segundo a qual a vontade do ser supremo manifesta-se por meio de heróis fundadores, entre eles vivos ou espíritos dos antepassados. Há, portanto, uma ontologia negro-africana, uma estrutura religiosa, embora os africanos não tivessem durante muito tempo um termo equivalente ao termo ocidental religião”.

Um vasto continente, cuja população “modelou” o outro – oponente ou parceiro – de tal maneira que não somente transformou o outro, mas também se adaptou, impregnando o conhecimento da noção de relatio, uma síntese criativa, coração e expressão da experiência religiosa africana e afro-americana. A ontologia que se configura explica o significado da vida, enquanto corpo e matéria, a criação do mundo, as relações entre os seres visíveis e invisíveis. Há a busca por explicar o permanente combate e recorrente inter-relação entre o bem e o mal, a vida e a morte, saúde e doença, prazer e dor, contentamento e sofrimento, fartura e escassez... saberes e fazeres expressados e mantidos através da oralidade, por gerações. E esta ação pode aquecer geração ainda não nascida se utilizarmos os aprendizados e debates sobre tal legado como subsídio educativo, jamais meramente ilustrativo, mas constituinte de nossa história e cultura.

Precisamos conhecer como se processa a cosmovisão “africana” buscando suas dimensões, e sua recriação no Brasil. Esse intento responde à renovação curricular que visa fortalecer o reconhecimento positivo das contribuições dos negros à sociedade brasileira.

Aproximadamente quatro milhões de africanos escravizados chegaram aos nossos portos em sucessivas levas, trazendo anseios, crenças e muito conhecimento. Trouxeram consigo o cabedal de memórias, tudo que fica além do esquecimento, algo que constrói e vivifica. Muitos sucumbiram, mas todos provaram sua resiliência cotidianamente. Aquele que resistiu, o fez em corpo, verbo, som e gesto. Corpo enquanto lugar, que recebe o eterno e o realiza.

As tradições aqui mantidas resistiram pela força deste corpo que se fez verbo pelo poder que a palavra traz. Mito reiterado no calor dos cânticos, no frescor das ervas, no cozimento das oferendas, no destemor dos combates.

O conceito de ancestralidade mítica compreende um tempo numa composição de eventos que aconteceram, estão acontecendo ou acontecerão num futuro próximo. Para fazer sentido, o tempo tem de ser experimentado, assim se tornando real. É através da sociedade, presente e passada, que ele é vivenciado. Tal sociedade pode ser a de hoje, mas pode ser e ter a mesma potência àquela de muitas gerações anteriores. Cada grupo, cada nação, cada casa religiosa tem um história, que se move do instante em que se vive para o enorme passado, uma história orquestrada pelo mito.

Há inumeráveis mitos no continente africano que narram a criação do universo, a origem do homem. O passado não está perdido, é lugar cheio de atividades e acontecimentos. Aqui o lugar corpo-memória se funde à pedagogia do cotidiano – intermediando as relações com o Todo. Aqui, no Novo Mundo, homens e mulheres lembraram-se de suas tradições ancestrais o que estava mais próximo de seus sentimentos e mentes. Como os poderes cósmicos permeiam a vida, o gênero humano escolhe manter tais poderes, destruí-los ou enfraquecê-los por meio de sua experiência. O ato ritualístico nesta perspectiva é validado no aqui-e-agora, na temporalidade do instante, porque tal momento contém o universo.

Conhecer, aprender e respeitar as expressões culturais negras
Em conversas com professores pode-se observar que o tema religiosidade é o mais difícil de ser trabalhado. Isto ocorre pelas vivências, em sua maioria constrangedoras, acontecidas em suas vidas pessoais e profissionais no espaço escolar. Apesar de discriminada, a religião de matriz africana é assunto na sala de aula. Para exemplificar, seguem dois relatos colhidos em capacitações do Projeto “A Cor da Cultura”, em 2006:

Uma professora nos conta que um aluno cita que nas redondezas da escola existe um “centro de macumba” que toca nos fins de semana a noite toda e, como ele é vizinho, já aprendeu todas as músicas. Neste momento começa um reboliço na sala com comentários contra ao Centro Espírita e uma defesa de alguns participantes (alunos ogãs e rodantes) já se pronunciam, em defesa do espaço religioso cantando os “pontos” que conhecem. Uns afirmam que aprenderam de tanto ouvir e outros admitem que frequentam o lugar.

A presença de um iniciado ao culto da tradição dos orixás, iaô, em sala de aula logo após o processo religioso, trouxe uma confusão para a turma. O desrespeito ao colega que utilizava seus aparatos (fios de conta e cabeça coberta) foi apresentado através das risadas e apelidos depreciativos ao “macumbeiro”.

Situações como as descritas acima possibilitam ao professor relacionar o momento com as re-significações que a Lei 10639/03 permite e determina a inclusão da discussão de forma elucidativa, através de novas informações alcançadas em pesquisas na área envolvida, no material do Kit do Projeto A Cor da Cultura e outras fontes. Desse modo, o alcance da pesquisa envolverá a toda comunidade escolar e, assim, abordar o tema e outros, que virão compor a discussão sobre a presença da população de origem africana no Brasil.

A partir dos anos 90, fruto de reivindicações do movimento negro, vimos uma nova abordagem sob a égide da Lei. Essa mudança paulatina apontava para a diversidade em termos de proposta curricular. Aponta-se para a importância de conhecer, aprender e respeitar as expressões culturais negras, entre elas a religiosidade. Valorizar tais manifestações possibilita compreender os diferentes modos de viver, conviver, pensar e ser no mundo. O desafio está em ampliar o olhar dos docentes e, consequentemente, dos discentes - para que haja uma real mudança nas concepções engessadas que o racismo e as pré-concepções nos legaram. Estamos numa forja, aprendendo. A escola brasileira não pode mais silenciar–se a esse saber, negando aos alunos tal conhecimento, que evoca a re-criação e a capacidade de resiliência que nos forma. Numa realidade como a nossa, isso é mais que válido.

Sabemos que essas tradições, tão importantes quanto qualquer outra, foram ditas como inferiores ou reduzidas a pecha de crendices, e ainda hoje precisamos de uma lei que imponha a necessidade de ensinar tal saber nas escolas. Esse é, na justa medida, o desafio da educação para diversidade. Uma valorização da história e ancestralidade africana e de suas manifestações no Brasil, não a partir de um “exotismo”, mas a partir do respeito e de um olhar sobre nós mesmos, nossa inteireza. A invibilização da portentosa herança africana em terras brasileiras foi cosida em racismos, pré-concepções e conseqüente falta de conhecimento, e isto foi feito por anos a fio. Tal ação não condiz com as propostas contidas na LDB, mas se constitui um real desafio. Entretanto, para alguns autores, é possível e necessário, confiar nos caminhos da ancestralidade como forma de apropriação pedagógica para compartilhar ensinamentos da cosmovisão africana em instituições de educação formal.


Referências bibliográficas
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BARROS, José Flávio Pessoa. Olubajé – o banquete do rei – uma introdução à música sacra afro-brasileira. Rio de Janeiro: INTERCON-UERJ. 1999
BEEK Van, Walter E. A. & THOMPSON, Dennis. Religion in Africa. New Hampshire: Heinemann, 1998.
BENISTE, José. Òrun-Àiyé – o encontro de dois mundos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
BOTAS, Paulo. Carne do sagrado – Edun Ara – devaneios sobre a espiritualidade dos Orixás. Petrópolis: Vozes, 1996.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume I. Rio de Janeiro: Vozes, 1991.
CAMPBELL, Joseph. Mitologia Primitiva. São Paulo: Pallas Athena. 1992.
Eliade, Mircea & Coliano, Ioan P. Dicionário das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1994.
JUNG, C.G. (2004) O Eu e o Inconsciente. Obras Completas, Vol. VII/1. Petrópolis: Vozes, 2004.
Lody, Raul. O povo de Santo. Rio de Janeiro: Pallas, 1995.
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LOPES, Nei. Kitabu – o livro do saber e do espírito negro-africano. Rio de Janeiro: SENAC, 2005.
MURPHY, Joseph. Santeria – african spirtits in América. Boston: Beacon Press, 1993.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
RISÉRIO, Antonio. Oriki Orixá. São Paulo: Perspectiva, 1996.
Santos, Juana Elbein dos. Os nagô e a morte. Tese de Mestrado defendida para Paris IV. Petrópolis: Vozes, 1986.
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade – a forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 1988.
SOMÉ, SOBONFU. O espírito da intimidade. São Paulo: Odysseus, 2003.
Verger, Pierre. Orixás – na África e no Brasil. Salvador: Corrupio, 1990.
VERGER, Pierre. Artigos – Tomo I. Salvador: Corrupio, 1992.

Espelho meu: as crianças e a questão étnico-racial

 
02/08/2011

Espelho meu: as crianças e a questão étnico-racial

Por Yvone Costa de Souza

Falar e escrever sobre racismo e preconceito implica na apropriação da história da África e do Brasil pelas instituições, professores(as) e educadores(as), entendendo-os como sujeitos histórico-sociais, capazes de intervir nos processos de ensino e de pesquisa que constituem a dinâmica social no cotidiano da escola, demarcando-se que o território africano é composto da diversidade étnica, cultural e política. As matrizes culturais características desse povo, originadas e existentes no continente africano, delimitam as variadas etnias e suas culturas, ressaltando, também, a importância de cultuar os ancestrais de um povo excluído das matrizes curriculares e escondido em propostas pedagógicas emblemáticas de uma cultura eurocêntrica.

Ao tratar da questão das diversidades racial e cultural nas creches e na Educação Infantil torna-se relevante considerar a formação docente, que deveria ser o primeiro critério para a seleção das professoras que trabalham na Educação Infantil. Os cursos de formação em nível médio, modalidade normal, e em pedagogia de nível superior não se constituem de uma matriz curricular, mas, como coloca Gomes e Silva (2002), deveriam propor “o desafio de construir e implementar propostas voltadas para uma pedagogia da diversidade e assim construir uma proposta mais coletiva” que contemple a infância pequena.

A má qualidade da formação e a ausência de condições adequadas ao exercício do trabalho dos professores são históricas em nosso país, trazendo em evidência as amarras sociais e culturais encontradas no cotidiano da prática docente. Um professor ou uma professora, no seu curso de formação, estuda e é apresentado(a) a uma criança e, quando eles chegam para trabalhar nas unidades escolares públicas e comunitárias, encontram outra. Deparam-se com histórias, fatos, locais, situações, solicitações que a sua formação não dá conta. Sua formação profissional permanece periférica. No caso da Educação Infantil, as políticas de formação no Brasil, desde a década de 90, vêm sendo representadas por movimentos para a melhoria na qualidade, resultando numa definição de identidade dos serviços destinados às crianças de 0 a 6 anos.

Para compreender o conjunto de saberes dos professores da educação infantil, é preciso considerar as marcas produzidas historicamente em sua trajetória profissional, marcadas pela diversidade de funções do atendimento às crianças pequenas, que refletem e influenciam o cotidiano da educação infantil (AQUINO, 2008, p. 169).

A formação inicial nos cursos de magistério, modalidade Normal médio e superior, até os anos 90, não contemplava a criança de 0 a 3 anos, o que confirma a invisibilidade dessa faixa etária, mesmo no mundo contemporâneo. Como vimos, somente a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 e, posteriormente, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é que se estabeleceu a Educação Infantil como etapa inicial da Educação Básica.

Em relação aos cursos específicos sobre Educação Infantil, podemos concluir que na Formação de Magistério, assim como no Curso de Pedagogia, nas escolas normais e nas universidades, as crianças pequenas não foram apresentadas aos(às) educadores(as).

A compreensão de que trabalhar com Educação Infantil é uma tarefa que não exige formação está ligada a uma visão que não reconhece nesse “cuidado” a sua dimensão educativa, desafiadora, voltada para o desenvolvimento da criança. A presença de professores nas turmas de crianças maiores denuncia o quanto ainda a Educação Infantil  organiza seu trabalho como sendo uma fase preparatória para a escola regular. É como se só as crianças maiores precisassem de um trabalho pedagógico, que, na Educação Infantil, ainda é visto como se fosse unicamente a preparação ou “prontidão” para a escola.

Há necessidade de se estabelecer um currículo em que conversar com a criança que ainda não fala, dar banho, trocar fraldas, colocar no colo, organizar um ambiente que garanta o movimento para aquelas que ainda não andam e deixá-las o menor tempo possível no berço sejam atividades pedagógicas que envolvam interação, preparação, trabalho corporal, afeto, amizade e respeito pelas diferenças e as diversidades.

Percebemos ainda que, embora com formação, muitos têm uma experiência inicial de trabalho em escolas com turmas regulares. O fato de hoje trabalharem em creches não possibilitou muita discussão sobre a especificidade do trabalho com a Educação Infantil como um todo, do berçário às turmas de 6 anos. Há uma necessidade da formação continuada, voltada para a Educação Infantil e que seja entendida como necessária para a atuação em todas as turmas, mas em particular, com as crianças de 0 a 3 anos.

O negro e o preconceito racial são frequentes no espaço da escola e na história do Brasil. A diversidade racial revela a riqueza de um povo de luta, de resistência e as conquistas dos povos negros. Na formação docente e no cotidiano da escola, embora a Lei nº 10.639 garanta os estudos da África e da Cultura Afro-brasileira, estes apenas são apresentados às crianças em datas comemorativas oficiais, fugindo do caminho legal. O emblema eurocêntrico embranquecido é tão forte, que mesmo com a Lei, a escola em seus projetos pedagógicos e práticas cotidianas não a utiliza como ferramenta de desconstrução desse espaço segregatório.

Pensar na formação docente para infância com um currículo de valorização cultural que contemple as nossas origens africanas pautado na diáspora é um caminho de luta contra o racismo. Buscar estudos e ações que considerem o ensino e a pesquisa da história do povo africano, a marca de um povo arrancado, de maneira trágica, de seu continente, lugar de uma rica cultura construída por povos de 53 países, é imprescindível para a construção de um currículo pautado na valorização da diversidade racial.

A África é um dos maiores continentes do planeta, perdendo apenas para a Ásia e a América e, ganhando disparado, do continente europeu. Mas, a marca da dominação herdada e produzida durante esse trágico e cruel episódio, a escravidão, pode ser desconstruída através de propostas, vontade e comprometimento políticos do poder do Estado.

Um dos grandes desafios que se coloca, ligado diretamente à formação dos educadores infantis, é a superação de dificuldades de conviver com as questões raciais entre as crianças e entre eles mesmos, a fim de que se construa uma prática pedagógica voltada para o respeito mútuo, conscientizando-se de que é fundamental lidar com as diferenças, partindo do princípio de que elas são riquezas e precisam ser respeitadas, ou seja, revelar um pouco as emoções, as razões individuais e os preconceitos herdados da nossa história e da nossa cultura. Sem desconsiderar a nossa história de vida, que nos leva a enxergar melhor os impedimentos à mudança, precisamos abandonar os sentimentos e emoções que impossibilitam o enfrentamento dessas questões.

Dialogar com os professores de Educação Infantil sobre as questões raciais, de preconceito e discriminação, permanentemente fez, e ainda faz parte das minhas experiências pessoal e profissional, por acreditar que a troca, a partilha de conversas é um caminho possível para reconstruir ideias, valores e representações que se tem a respeito do negro, na certeza de que essas conversas favorecem as minhas próprias reflexões.

Relembrando as histórias da minha Infância, vejo que os adultos daquela época, assim como os de hoje, não percebiam que muitas brincadeiras tinham um caráter segregatório, faltando-lhes entendimento para reconhecer os indicativos de preconceito para combatê-los durante o processo educativo das crianças.

[...] precisamos sempre rememorar a história – a de cada um de nós e de todos – conhecer a história, estudar a história, desatando a linguagem acorrentada por tão diversas mordaças, ameaças, correntes, grilhões. Destaco, ainda, que os profissionais da educação precisam discutir o racismo e os seus próprios preconceitos, temas que, com frequência, não têm sido reconhecidos como legitimamente pedagógicos. Encontro racismo e preconceito nas coisas da escola? Sim, e muito; e como poderia ser de outro modo? [....] acredito que existe o melhor método, uma única melhor maneira de ensinar isto ou aquilo; que tem especial apego a escolas de desenvolvimento, a padrões de aprendizagem...; que padroniza, que tem nas grades (curriculares) a base de seu trabalho: que separa, que se grega, desagrega, valoriza a delação, a desunião, a premiação e o castigo (KRAMER, 1995, p. 69).

O uso generalizado do conceito de racismo pode esvaziar a importância das questões raciais, impedindo dessa forma o processo de entendimento da necessidade da persistência da discriminação sobre este tema, dentro de um novo enfoque.  

Os estudos que tratam das questões raciais no Brasil estão divididos, de acordo com Nogueira (1979), em três correntes: afro-brasileira, a dos estudos históricos e a sociológica, cada qual trazendo, de acordo com suas especificidades, suas concepções e definições de racismo e preconceito.

Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos quais se tem como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações os traços físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo grupo étnico, para que sofra as consequências do preconceito, diz-se que é de origem  (NOGUEIRA, 1979, p.78-79).

Dentre as diferenças dos preconceitos raciais de marca e de origem, gostaríamos de destacar a questão da carga afetiva, em que, segundo o autor, o preconceito de marca tende a ser mais intelectivo e estético, enquanto o de origem tende a ser mais emocional e integral.

Acreditamos que o racismo, o preconceito racial e os estereótipos negativos experimentados pela criança negra influenciam o seu desenvolvimento global e, em particular, a sua autoimagem e estima. Neste sentido, procuramos destacar como as questões raciais e os preconceitos são percebidos e interpretados no cotidiano das creches.

Segundo definição do “Dicionário de relações étnicas e raciais”, o termo preconceito vem do latim prae, antes, e conceptu, conceito, que pode ser explicado como um conjunto de crenças e valores aprendidos, mesmo não havendo nenhum contato ou experiência compartilhada anteriormente, podendo ser um fenômeno individual ou social. O preconceito social está ligado às classes sociais, às atitudes ou ideias formadas antecipadamente, sem fundamento razoável e de maneira desfavorável em relação aos vários elementos sociais, grupos e culturas.

No cotidiano das instituições de Educação Infantil, frequentemente o professor se depara com uma série de evidências sobre as questões raciais e o preconceito, tendo ou não clareza delas, muitas vezes utilizando práticas pertencentes ao senso comum que podem reforçar o racismo. Percebemos, nas creches, crianças negras querendo os seus cabelos lisos, ruivos, louros e negros escorridos, isto é, buscando a ideia do “belo” que lhes é transmitida através de um processo excludente e preconceituoso, deformando a imagem que a criança negra faz de si e reforçando a negação de sua condição racial.
Nos parâmetros curriculares nacionais esses atores não aparecem, a proposta pedagógica inicial não respeita e acolhe a diversidade étnico-racial; a cultura da criança e suas diversidades aparecem timidamente numa proposta pedagógica excludente; os saberes das disciplinas omitem a cultura local, étnica racial, social e de direito.

Em 2003, foi aprovada a Lei 10.639/03, tornando obrigatório nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, tanto oficiais quanto particulares, o ensino da História e da Cultura Afro-brasileiras, da História da África, o que, esperamos, possa apontar rotas, caminhos e possibilidades de romper com as desigualdades e a intolerância no Brasil. O sucesso da implementação da lei depende da continuação das lutas sociais e coletivas, sendo a sua mera aprovação um exemplo de vitória e conquista dos movimentos sociais.

O convite é para conflagrarmos um lugar de luta sutil e natural, um espaço de mobilização que componha uma pauta contra o racismo e o preconceito, introduzidos nas brincadeiras de roda, de pipa, de amarelinha, reinfantilizando os espaços de formação, de educar e cuidar, não se desprezando a pedagogia do lugar, como cita Ana Beatriz Goulart de Faria (2007), ressaltando a importância de se pensar sobre o

[...] sentido de restaurar a experiência infantil do urbano, o amor pelas esquinas, os esconderijos, os encontros fortuitos, os deslocamentos das funções, o jogo. [...] Imperdível e fundamental a grande estreia dos últimos tempos! (ANA BEATRIZ GOULART, 2007, p.103-104).

Que os meninos e as meninas das creches públicas, comunitárias, privadas, filantrópicas e confeccionais no Brasil não recebam titulações pela cor e pelo pertencimento racial é nosso sonho e esperança.

Yvone Costa de Souza é assistente social da Creche Fiocruz, Mestre em Educação, Cultura e Comunicação pela FEBF-Uerj, especialista em Educação Infantil pela PUC-Rio, professora-substituta do Departamento de Educação e da Infância da Uerj.



Referências bibliográficas

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