domingo, 4 de dezembro de 2011

OFICINA NACIONAL DE ELABORAÇÃO DE POLITICAS PÚBLICAS PARA POVOS DE TERREIROS - MARANHÃO

OFICINA NACIONAL DE ELABORAÇÃO DE POLITICAS PÚBLICAS PARA POVOS DE TERREIROS - MARANHÃO

MEMBROS DO FOREMA/RN PARTICIPAM DA OFICINA NACIONAL DE ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA PARA POVOS TRADICIONAIS DE TERREIROS

        Entre os dias 27 a 30 de novembro está acontecendo em São Luís do Maranhão a primeira Oficina Nacional de Elaboração de Políticas Públicas de Cultura para Povos Tradicionais de Terreiros. O evento visa promover um diálogo com o segmento para construir diretrizes que norteiem um conjunto de políticas públicas, com destaque para as políticas culturais e de igualdade racial, sendo assim um marco na história da valorização e inclusão dos povos afrodescendentes.

        O primeiro dia de atividades foi iniciado com uma mostra de cinema nigeriano, que exibiu o filme EFUNSETA ANIWURA, em seguida ocorreu um debate com o diretor Tunde Kelani da Nigéria e João Velho (cineasta).







Abertura da mostra de cinema nigeriano

Babá Melque T’Sangó na mostra de filme nigeriano

         O primeiro dia foi encerrado com a bela apresentação do Tambor de Crioula, expressão de matriz afrobrasileira que envolve dança circular, canto e percussão de tambores.





          Um grande cortejo cultural dos povos de terreiros pelas ruas do centro de São Luís iniciou o segundo dia de atividades do evento. O cortejo partiu da Casa das Minas – tombada pelo IPHAN, em seguida passou pela Casa de Nagô, encerrando-se no centro histórico. Durante todo o cortejo lideranças dos povos de terreiros saudaram os orixás e discursaram pelo fim da discriminação, do preconceito e da intolerância religiosa. A sociedade em geral que assistia ao cortejo foi bastante receptiva, demonstrando a visibilidade que esta atividade proporcionou às expressões culturais de matriz africana.





Interior da Casa das Minas



Com Pai Euclides da Casa de Nagô  & IYA MÁRCIA (yalorixá do Egbe Ile Iya Omidaye Ase Obalayo, terreiro é sede do projeto 'Matrizes que fazem' geração de emprego e renda, patrocinado pela Petrobrás)


Destaque para a Iyá Osun da Nigéria


Babá Melque T’Sangó no cortejo

         A Oficina Nacional de Elaboração de Políticas Públicas de Cultura para os Povos Tradicionais de Terreiros é uma iniciativa do Ministério da Cultura em conjunto com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a Fundação Palmares, a Secretaria de Promoção de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República e a Comissão Nacional dos Povos de Terreiros em parceria com o Governo do Estado do Maranhão. O envolvimento destas instituições demonstra o significado das expressões culturais de matriz africana, reforçando a importância da diversidade cultural e apontando para a necessidade de se estabelecer mecanismos que fortaleçam a efetivação dos direitos culturais e das liberdades fundamentais.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Valorização da Cultura afro brasileira



Notícias - A cor da cultura


Candomblé, afinal o que é?

 
01/10/2010

Candomblé, afinal o que é?

Jairo SantiagoProfessor Doutor em Comunicação /ECO/UFRJ


Desde o século XVI milhões de negros vindos da África chegaram à costa brasileira, são de diversas etnias, que, mesmo considerada a diversidade cultural, comungam do fato de terem perdido as referências territoriais e comunitárias.
Restavam-lhes apenas os valores e princípios que demarcavam sua visão de mundo.
Esse grupo utiliza as mais diversas formas e táticas de  sobrevivência.
Importante que se diga, que não se tratava apenas de uma sobrevivência espiritual, mas principalmente do corpo, de uma forma de viver.
Diante da adversidade da escravidão, era preciso recompor as referências perdidas. A religiosidade se prefigurou como um dos caminhos possíveis nessa empreitada, e o Candomblé, dentre outras manifestações religiosas se singularizou na manutenção de valores e princípios negros na diáspora. O Candomblé em sua expressão de maior magnitude, a comunidade-terreiro, permitiu a recriação de laços  comunitários e territoriais aniquilados com a escravidão.
Mas afinal o que é Candomblé?
Em primeiro lugar se faz necessário pensar que se trata de uma poderosa síntese que se processou em território brasileiro, sendo assim resultado de um longo e doloroso processo histórico, no qual os negros escravizados e, posteriormente os libertos, tecem laços comunitários e territoriais, consideradas as diversidades adversidades.  O negro se moveu, resistiu, se comunicou entre os fios da rede da repressão.
Entender essa tensa rede de acordos e enfrentamentos, de avanços e retrocessos, de disputas e acertos internos é o longo caminho para se compreender o que é o Candomblé. Nesse sentido, se lança mão aqui de uma metáfora para se tentar chegar a um primeiro entendimento do que seja candomblé, ou pelo menos uma de suas traduções possíveis:
Imagine que uma pessoa viaja até a África e que lá chegando conhece um determinado prato da culinária local, interessando-se pelo referido prato, solicita a receita e descobre que alguns dos ingredientes não existem no Brasil, e, mesmo assim, consegue os ingredientes e volta ao Brasil, onde resolve reproduzir o prato, mas se propõe a algo mais, ou seja, resolve inventar um novo prato, que embora contenha ingredientes africanos não lembra nenhum prato conhecido na África.
Portanto é um prato brasileiro. Assim é o Candomblé, pois mesmo considerados os elementos simbólicos e religiosos africanos (ingredientes) é resultado do processo histórico na diáspora, é síntese da inventividade dos partícipes. As palavras inventividade e recriação são fundamentais à compreensão do papel do negro escravizado ou liberto na diáspora.
O Candomblé agrega territorialmente elementos que no território africano eram dispersos e objeto de cultos locais e até isolados. Muniz Sodré nesse sentido afirma:

Do lado dos ex-excravos, o terreiro de (de candomblé) afigura-se como a forma social negro-brasileira por excelência, por que além da diversidade existencial e cultural que engendra, é um lugar originário de força ou potência social para uma etnia que experimenta a cidadania em condições desiguais. Através do terreiro e de sua originalidade diante do espaço europeu, obtêm-se traços de fortes subjetividade histórica das classes subalternas no Brasil (SODRÉ.1988,p.18)

Retomando o conceito de comunidade-terreiro, percebe-se que a mesma implica além da junção de elementos dispersos e distantes, uma nova concepção de comunidade, que agrega vivos e mortos, implica em uma relação de troca entre os vivos e os ancestrais, entre deuses e seres humanos, implica ainda em uma visão de ser humano que negocia com os deuses e ancestrais uma boa vida na terra, uma vida alegre, criativa e em constante movimento, pois para o Candomblé nada é estático, tudo é movimento, tudo é troca constante.
A idéia de movimento remete a um dos elementos mais importantes do Candomblé, que a figura de Exu, senhor do movimento sem fim, é responsável pela existência dinâmica da realidade, tudo muda, seres humanos, árvores, pedras, todos são parceiros em uma relação que é dada pela dimensão de um jogo cósmico. As possibilidades vão sendo construídas e destruídas o tempo todo. O segredo da regra do jogo encontra-se na palavra acerto, ou seja, acertar um ponto, fechar um acordo, alterar uma situação, enfim simular e dissimular a realidade. Uma grande figura do Candomblé, o professor Agenor Miranda da Rocha , dizia com propriedade: Candomblé é um sistema cuja base é Exu.
Assim sendo, na impossibilidade de um ponto fixo de referência, e de uma conversão à uma verdade eterna e imutável, como caminha a civilização ocidental
desde Platão, o Candomblé acena sempre com a possibilidade de se mudar o mundo e o destino. Busca-se enganar a morte, nem que seja por uma vez. O candomblé não se prefigura como um espaço de conversão à uma única verdade. Pertencer a uma comunidade-terreiro não exige o pressuposto da adesão a verdade, basta estar ali. Em uma festa ou cerimônia pública não se pergunta se a pessoa acredita ou não na divindade presente, ou nos princípios ali vigentes.
Os deuses existem independentemente da fé. Deve se entender Candomblé como um espaço de enfrentamento do projeto universalista da civilização ocidental. Na comunidade-terreiro o homem é capaz de estabelecer uma relação de troca sem que sobre um resto a ser apropriado economicamente e em favor de algum grupo
dominante .
A comunidade-terreiro recria a referência territorial-comunitária perdida em razão da escravidão. Os negros e seus descendentes reconstituem possibilidades de enfrentar o mundo que lhes é hostil e adverso.
Candomblé e Modernidade – considerações finais
O Candomblé, embora não se possa dizer que esteja fora da modernidade, implica em pontos de enfrentamento a esse projeto de ocidentalização do mundo pela lógica do mercado. Alguns aspectos da comunidade-terreiro apontam na direção de negar a modernidade. Entre esses pontos podem ser destacados: a relação com o corpo, que deixa de ser uma mercadoria, a impossibilidade da reprodução ad infinitum dos bens, a relação com o tempo e com o espaço.
A crença na palavra do pai fundador que se traduz no culto à ancestralidade, o reforço do sentido coletivo do agir humano que se choca frontalmente com o individualismo moderno; a crença no movimento constante da vida e dos homens, a crença na palavra e a desnecessidade de contratos escritos para garantir o cumprimento de um acordo e finalmente a negação de um dos sentidos da existência, a noção de axé. Para os adeptos do Candomblé a vida é um ato de alegria que se perpetua entre os parceiros do cósmico. Mas viver o hoje não implica uma visão pós-moderna de vida, um imediatismo infrutífero, mas sim, uma relação de ética comunitária, a felicidade de um deve estar imbricada com a felicidade de todos. Afinal isto é Candomblé.


Referências Bibliográficas
SODRÉ,Muniz, A verdade seduzida: Por um conceito de cultura no Brasil: Rio de Janeiro,CODECRI, 1983.
___________, O terreiro e a cidade: A forma social brasileira, Petrópolis: Vozes,1988.

Da lei à ética

 
02/12/2010 - Da lei à ética

Da lei à ética

Por Kássio Motta
Certa vez ouvi de uma docente, participante da Formação de A Cor da Cultura, que era direito dela – ainda que tivesse consciência da discriminação racial vigente na sociedade brasileira – não querer se colocar “nesse lugar” – isto é, o lugar do Outro, lugar do discriminado, como sugeria a atividade. A professora foi, então, lembrada de que o projeto se realiza como uma forma de ação afirmativa, promotora do reconhecimento e da elevação de autoestima da população afrodescendente, amparada na legislação que torna compulsório o ensino de História e Cultura Afro-brasileiras.
Infelizmente, mesmo na esfera da educação, ainda precisamos recorrer à Lei Nº 10.639/03 para justificar iniciativas relacionadas à desconstrução das categoriais raciais que organizam o imaginário e os espaços sociais brasileiros. Infelizmente, precisamos da regulação legal para fazer com que percebamos o quanto estávamos, estamos, e, certamente, estaremos, ainda que por algum tempo, envoltos pela vergonhosa discriminação racial.
Mas, afora a legislação, o individualismo não nos permite perceber o quanto antiéticos, portanto também discriminatórios, são certos posicionamentos, enunciados e práticas. Tão naturalizados, irrefletidos, quase reflexos, incorporados, que não nos damos conta do que falamos, fazemos, do modo como olhamos ou reagimos frente às diferenças.
Precisamos recorrer menos à Lei e mais à ética, às práticas que gerem o bem comum, que superem o individualismo e ampliem o olhar para o entorno, para o mundo, para os Outros e para nós mesmos. Devemos olhar para nós mesmos não de forma ensimesmada, mas, sim, dentro do contexto social. Um olhar que nos permita enxergar a riqueza da diversidade humana e experienciar a alteridade. Como afirmou Paulo Freire, que possibilite compreendermo-nos como “um ser de relações num mundo de relações” (FREIRE, 1992).
Portanto, mesmo que não se sinta pertencendo ao “lugar” do discriminado, ao enxergar as desigualdades e injustiças, o ser humano, esse ser de relações, tem o dever de agir contra elas, em prol de uma sociedade brasileira mais justa e equânime.
Se entendemos a escola como um espaço de crítica às relações sociais – principalmente às étnico-raciais –, a plenitude do sistema educacional só será alcançada quando a escola for um espaço promotor de conhecimentos e transformação das injustiças e desigualdades sociais vigentes (BRASIL, 2004).
Mas não bastam a criticidade, a reflexão, a geração de conhecimentos e as transformações. Temos que potencializar nossa dimensão ética, que Regina Migliori denomina como competência amorosa.
“Uma forma de inteligência vinculada àquilo que a sabedoria universal traduz como valores humanos universais.
Os valores humanos nos levam a reconhecer a riqueza da diversidade oferecida por uma realidade complexa e complementar. Nosso agir no mundo passa a respeitar as diferenças numa perspectiva que inclui conhecimento e amor, competência e sensibilidade. Daí a importância de estabelecermos um circuito transdisciplinar não só entre as diversas áreas de conhecimento, mas também entre as múltiplas dimensões humanas e suas próprias formas de produzir conhecimento.” (MIGLIORI, 2008).

É justamente na direção da transdisciplinaridade entre as áreas do conhecimento e entre as múltiplas dimensões do ser que foi pensado o projeto A Cor da Cultura. Com base nos Eixos Temáticos (ET) do Ministério da Educação, nos Pilares da Educação (PE) da Unesco e nos Valores Civilizatórios Afro-brasileiros (VC) a metodologia privilegia a acolhida, o diálogo e a alteridade.
Ao trabalhar o ser humano como ser de múltiplas dimensões, a metodologia procura valorizar todas as formas de produção de conhecimento, sejam elas afetivas, sensitivas, emocionais, espirituais. E não somente as racionais, no sentido mais limitado do termo. Por meio de uma série de atividades lúdicas, dinâmicas de grupo e plenárias sobre os temas propostos, a metodologia promove um diálogo de respeito às diferenças, em que a alteridade é constantemente incentivada.
Essa perspectiva metodológica compreende que o conhecimento deve ser construído e reconstruído, processualmente e continuamente (ET). E, sobretudo, coletivamente, valorizando os saberes e experiências individuais. Nessa dialética de expressar a própria opinião, ouvir as contrárias e tecer uma terceira, uma quarta, uma outra opinião, os participantes devem aprender a ser (PE)
“para desenvolver, o melhor possível, a personalidade e estar em condições de agir com uma capacidade cada vez maior de autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. Com essa finalidade, a educação deve levar em consideração todas as potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se” (UNESCO, 2010).  

Assim, o projeto A Cor da Cultura trabalha alguns valores civilizatórios afro-brasileiros, como a oralidade, a ludicidade, a memória, a circularidade – no infindável processo de construção e reconstrução de conhecimentos –, e, por que não dizer, o Axé, uma vez que sendo força vital está presente em tudo e em todos os seres – imagine no processo de aprender a ser, quando precisamos também aprender a conviver (PE). E conviver pressupõe respeito às diferenças, como, por exemplo, aos diversos saberes e fazeres dos educandos e aos distintos tempos pedagógicos de cada um, pois todos aprendem em tempos e ritmos diferentes (ET).
Uma pedagogia da diversidade precisa, não só promover o respeito à diferença, mas, principalmente, encorajar o cooperativismo e o comunitarismo (VC), para efetivamente gerar uma aprendizagem inclusiva (ET), não apenas em termos de diversidade metodológica e avaliativa, mas de coparticipação.
Por fim, a metodologia desenvolvida em A Cor da Cultura pressupõe uma gestão participativa e que tenha como referência a elaboração coletiva do Projeto Político Pedagógico (ET), que pense a diferença como complementaridade e possibilite a circularidade (VC) de ensinaraprenderensinar.
Para além do conhecimento sobre História e Cultura Afro-brasileiras, A Cor da Cultura visa a despertar em educadores(as) e educandos(as) uma disposição de aprender a conhecer, de aprender a aprender (PE) em “todas as oportunidades oferecidas pela educação ao longo da vida” (UNESCO, 2010).
Somente ao desenvolvermos esta amplitude cognitiva poderemos romper com os antolhos que formatam uma visão discriminatória. Percepção estreita que presume a discriminação racial atingindo apenas um “lugar” social. Um locus ao qual pertence, exclusivamente, o Outro. Precisamos despertar para os desajustes que a discriminação impinge também aos discriminadores, que supervalorizam-se rebaixando sistematicamente o diferente.
Ao reconhecer a realidade de discriminação racial em que vivemos, é preciso atuar para transformá-la. Não fazê-lo é uma evidência concreta de que algum benefício se tira da situação em que nos encontramos. E por isso, a resistência à mudança. Mudar, por exemplo, no sentido de reconhecer que muitas vezes aquilo que, orgulhosamente, classificamos como mérito é, de fato, um privilégio (BENTO, 2003). Ou seja, em vez de conquistas por merecimento, obtêm-se “conquistas” por regalias e a vantagens em detrimento de outros. Esse desvirtuamento não pode ser benéfico a ninguém.
Com a finalidade de expor como o racismo e a discriminação racial afeta a todos, o projeto A Cor da Cultura cria uma tecitura com Eixos Temáticos, Pilares Educacionais e Valores Civilizatórios Afro-brasileiros. Uma trama metodológica cujas costuras são falas, sentimentos, ideias, anseios, memórias, reflexão e autorreflexão. Um espaço para se perceber ligado ao mundo e ao Outro, pois
“a pessoa que se abre para si mesma, para o outro e para o mundo, construindo relações autênticas e um olhar crítico sobre a realidade, inaugura com essa abertura a relação dialógica” (LOUREIRO apud GUSTSACK, 2008).

Ao formar educadores para abordar a temática étnico-racial em sala de aula, A Cor da Cultura rompe com a indiferença e desperta o potencial ético dos participantes. Intenta fazer com que todos percebam que têm a responsabilidade de intervir em qualquer “lugar” de discriminação, pois se a Humanidade é una, reduzir ou permitir que se reduza a humanidade do Outro é reduzir-se a si próprio.
  
Legenda
ET - Eixos Temáticos do Ministério da Educação
PE - Pilares da Educação da Unesco
VC - Valores Civilizatórios Afro-brasileiros A Cor da Cultura 
 Kassio Motta é mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense, Pesquisador do Laboratório de Etnografia e Estudos em Comunicação, Cultura e Cognição - LEECCC/ UFF.
 

Referências bibliográficas
BENTO, Maria Aparecida Silva. Branquitude: o lado oculto do discurso sobre o negro. In CARONE, Iray e BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Conselho escolar e o aproveitamento significativo do tempo pedagógico/elaboração. Ignez Pinto Navarro et al. – Brasília: MEC, SEB, 2004.
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 10ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
GUSTSACK, Felipe. Dicionário Paulo Freire. STRECK, Danilo R., REDIN, Euclides, ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
MIGLIORI, Regina. Ser Sustentável – uma nova consciência em educação. Disponível em <http://www.migliori.com.br/artigos_folha.asp?id=6>, Acesso em 26/10/2010.
PIZA, Edith. Porta de vidro: entrada para a branquitude. In CARONE, Iray e BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
UNESCO. Educação: um tesouro a descobrir. Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. Brasília: ED.96/WS/9, 2010.

A lei 10.639/03 contra o racismo intelectual

 
11/02/2011 - racismo

A lei 10.639/03 contra o racismo intelectual

Por Amauri Mendes Pereira

“Foi em Diamantina, onde nasceu JK, que a princesa Leopoldina arresolveu se casar / Mas Xica da Silva tinha outro pretendente, e obrigou a princesa a se casar com Tiradentes / (...) Da união deles dois ficou resolvida a questão, e foi proclamada a escravidão / E assim se conta essa história, que é dos dois a maior glória / Dona Leopoldina virou trem, D. Pedro é uma estação também" ("Samba do crioulo doido", de Stanislaw Ponte Preta
Samba do Crioulo Doido
Stanislaw Ponte Preta

Nos anos 70, Sergio Porto/Stanislaw Ponte Preta, escritor e humorista, fez um enorme sucesso com o “Samba do crioulo doido”, uma piada sobre a (in)capacidade intelectual e a (não)lucidez do compositor de escolas de samba. Assolado por informações vistas como fora de seu horizonte cultural, ele não consegue dar conta: e “acontece” um samba sem pé, nem cabeça, misturando feitos e personalidades históricas de maneira desconexa e aleatória.
O prestígio daquele autor impôs um silêncio constrangido a muita gente. Era evidente a racialização: afinal também há compositores brancos no mundo do samba. É também flagrante a insensatez da “piada”: compositor “pirado”? Ao contrário, o comum é lembrar com facilidade de grandes sambas enredo nas Escolas de Samba, mesmo os não vencedores, que não chegaram “à avenida”.
Por que foi fácil para aquele intelectual fazer a piada racista? Primeiro porque ele podia fazê-la: sua expressão era assegurada em coluna regular de importante jornal de circulação nacional. Segundo, que no país da democracia racial ele tinha liberdade para isso, pois ninguém é racista: era apenas uma brincadeira... Terceiro, porque ele não conhecia, ou conhecia pouco o mundo do samba, para saber do cuidado com a criação artística, poética, e o lugar especial que têm naqueles contextos. O que se passa de existencialidades e sociabilidades nos “meios negros” em quase todas as regiões brasileiras é pouco conhecido, e quase sempre estereotipadamente,. Apesar de espaços comuns a brancos e negros, sempre houve um viés “racial” na segregação social.

Enfim, a pretensão aqui é argumentar que a lei 10.639/03 vem para ajudar nesse tipo de situação. Tirando-se a Historia e Cultura Afro-Brasileira da culturalização e folclorização – o gueto em que foi confinada – impõem-se rearranjos teóricos e éticos de máxima relevância. De saída, é imperativo problematizar a naturalização da “brincadeira racista”: como não perceber, agora institucionalmente, já que o bom senso não conseguiu se impor, que racialização só é “uma coisa a toa”, uma “brincadeira” para quem racializa, não para quem é racializado? Outra coisa, ainda aproveitando o exemplo: é notável a contribuição de alguns intelectuais que se dedicaram a conhecer o mundo do samba: é comum encontrar-se em seus textos, embora nem sempre analisadas, a multiplicidade de dimensões (política, econômica, e outras) dos processos sociais que instituíram, tantas vezes “a ferro e fogo”, as manifestações culturais de matrizes africanas, sua historicidade, sua simbologia, sua estética, como elementos centrais na formulação da identidade nacional brasileira. Ou seja, o mundo negro, que pode ser apresentado através do “guarda chuva conceitual” História e Cultura Afro-Brasileira, que nos perdoe Sergio Porto, autor de obra admirável sob vários aspectos, não cabe em estereótipos: é muito mais!
 Justiça seja feita
Durante anos o Movimento Negro Brasileiro capitaneando redes mais amplas da luta contra o racismo bradou pela democratização dos currículos educacionais: História da África! História social do povo negro! Respostas: de um lado os eternos “ingênuos”: “Por que a história do negro? Por acaso temos uma história do branco?” Ou “Por que história e cultura afro-brasileira se somos um povo miscigenado?” De outro, se acumulavam pesquisas particularmente na área da Educação: sobre os prejuízos causados pelo preconceito racial à qualidade do ensino, e à formação intelectual e da consciência social cidadã dos nossos estudantes, pelas omissões e/ou distorções (quase sempre as duas coisas) reproduzidos em livros, conteúdos e procedimentos pedagógicos.

Educadores demandavam cursos a respeito desses temas. Além da busca de enriquecimento intelectual, valia a pena mergulhar naquele magma de vivências (“saber” é pouco-só vale se for vivência) de que se ouve falar! Seria bom demais encantar aulas com a sensibilidade e profundidade que extravasa em conhecimentos e mitologias, cores, cânticos e sonoridades, danças e movimentos, jeitos e trejeitos, no imaginário recheado de significações inconsúteis! Mas ansiavam, também, por preparo para lidar com situações “constrangedoras”, “conflituosas”, “difíceis”, etc, geradas por “incompreensões” e “brincadeiras”: manifestações de preconceito e discriminação racial no cotidiano escolar. Por que não se falava “disso” na formação de professores? Só excepcionalmente e desafiadoramente um-a ou outro-a professor-a, versado-iniciado-a, tomava a iniciativa e promovia palestras, exposições de vídeos e de manifestações culturais, debates, etc.
 Agora é Lei!
Mas atenção: não se trata de, mais uma vez, exercitar piedade. Fora com a vitimização e a auto-vitimização. A Lei não é para o negro. A Lei é para todos/as. É crucial, tanto expurgar a auto-estima rebaixada pelo sentimento de inferioridade (que aflige mais a negros-as), quanto a auto-estima inflacionada pelo sentimento de superioridade (habitualmente incorporada por brancos-as). Uma coisa não acontece sem a outra: são gêmeas e terríveis as distorções na formação da consciência social, derivadas de preconceitos e estereótipos raciais, inoculados desde tenras idades, em famílias de todas as cores, despreocupadas/desinteressadas/indiferentes à questão racial. Não existe, portanto, um problema dos negros. É perniciosa a inocência/conveniência do “branco” que se coloca “de fora”: finge que não percebe as vantagens materiais e simbólicas para os mais claros, de cabelos lisos, etc.

A lei oferece à sociedade a oportunidade da se repensar. Esvaziar a idéia comum e imobilizadora, de que “a questão é só de classe social”, e de que são seus próprios problemas psicológicos que criam complexos e recalques, que ainda assolam muitas crianças, jovens, homens e mulheres negras: Isso que existe, mas não é causa, e sim conseqüência do racismo.

A implementação da Lei alerta, também, para o risco de se perpetuar – agora com mais pesquisa e informações – o gueto conceitual e historiográfico que trata da trajetória da população negra. Como se História e Cultura Afro-Brasileira não fosse História do Brasil. Aqui tudo aconteceu muito mais intensamente do que em qualquer das nações mais extensas criadas no novo mundo: aqui chegou quase a metade de todos os seres humanos vindos no tráfico Atlântico; aqui começou a escravidão nas Américas e foi o último lugar onde acabou; e só aqui houve escravidão – e luta contra a escravidão – em todo o território nacional. Como pode esse peso demográfico, essa longevidade histórica, essa capilaridade territorial e cultural, ser vista nas interpretações mais influentes sobre a formação e desenvolvimento da sociedade brasileira, como meras contribuições. Toda densidade das ações, enunciações, corpos e almas da gente negra, reduzidos a apêndices, “encaixados” numa História do Brasil caiada, como ironizou José Honório Rodrigues (1964). Numa interpretação isenta de racialismo isso é incabível.

Às-aos Agentes da Lei, cabe mostrar como tudo seria diferente se a partir da república a lei tivesse sido pra valer! Ao invés disso foi vitorioso o projeto racial de nação, de Estado nacional e de sociedade. Homens de ação, pensadores e instituições mais ilustres e poderosos eram reféns das doutrinas do “racismo científico”, dominantes na Europa do século XIX: daí a colossal política pública do nascente Estado Republicano ter sido racial – a imigração: foram trazidos para o Brasil mais imigrantes europeus em pouco mais de 35 anos, quanto africanos em 350 [
1].  Como não explicitar a evidência de que as classes dirigentes pretendiam “lavar a mancha negra”, “depurar o mascavo nacional [o sangue negro]”, realizar uma “redução étnica” ou um “genocídio pacífico” – em outras palavras, substituir a população negra como mais forte marca demográfica, social e cultural?[2]. Não é pouco o trabalho das-dos Agentes da Lei. Sua práxis se inscreve em novo tempo: Pelourinhos, mordaças, correntes, dores sem fim, fechamentos, resistências e reatividades, já tiveram seus usos para a dominação e para as denúncias e lutas contra a dominação. Hoje são outras as ferramentas da dominação e outras serão as de efetiva libertação. Celebrar o presente e a ação transmutando tudo que já há em Cultura de Consciência Negra: superação permanente, deliberada e consistente dos preconceitos, estereótipos, lugares concedidos, favores, concessões, “reconhecimentos” – sem limites raciais aos sentidos de Justiça Social, Cidadania, Democracia.


 [1]Decreto-lei n° 528. 28.06.1890. “É inteiramente livre a entrada nos portos da República, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal de seu país, exceptuados os indígenas da Ásia e da África.” Constantino Ianni (1966) fala em cerca de 4 milhões, maioria italianos. 

          [2]Trabalhos como os de SEYFERTH e VAINER, citados, mostram a centralidade do racialismo no pensamento social brasileiro, e na política de imigração colonização entre os finais do século XIX  e meados do século XX.

Bibliografia
IANNI, Constantino. Homens sem paz: os bastidores da emigração italiana. Editora Civilização Brasileira.RJ. 1966.
RODRIGUES, José Honório. Brasil e África Outro Horizonte. Civilização Brasileira. RJ. 1964
SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In Raça, Ciência e Sociedade. CHOR MAIO, Marcos e VENTURA SANTOS, Ricardo. FIOCRUZ/CCBB. RJ. 1996
VAINER, Carlos. Estado e raça no Brasil: notas exploratórias. Estudos Afro-Asiáticos n° 18. RJ. 1990

Amauri Mendes Pereira é professor de Sociologia da UEZO-RJ

Origens e significados do termo raça

 
12/05/2011 - Lei 10.639/03

Origens e significados do termo raça



Maria Clareth Gonçalves Reis
Doutora em Educação pela UFF
Pesquisadora Associada do NEAB/UFJF 
Capacitadora do projeto A Cor da Cultura
1. Introdução

Este artigo baseia-se nas necessidades observadas durante os cursos de formação de professores para trabalhar com a Lei 10.639/03. Lei que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileiras, História da África e dos africanos nos estabelecimentos de ensino públicos e privados.
Tive a oportunidade de conhecer um pouco o perfil de professores/as de alguns estados brasileiros, dentre eles: Mato Grosso do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Paraná, etc. Nessas ocasiões, percebi que parte significativa dos participantes desconhece a base do pensamento racista que, consequentemente, originou o racismo. A ideologia de superioridade e inferioridade entre os grupos humanos ainda permanece ativa em muitos pensamentos. Diante disso, surgiram algumas indagações: por que essa ideologia ainda está presente no pensamento de muitas pessoas? Como ela foi historicamente construída? E, conforme foi anunciado no Caderno 2, de Metodologia, da Cor da Cultura, “desvendar alguns conceitos, pode nos ajudar a rever nossos “pré-conceitos” (Brandão, 2006, p. 20). Daí, a necessidade de se conhecer a origem dos termos raça e racismo.
Inicialmente, é necessário entendermos a gênese da ideia de raça, base do pensamento racista, e de onde se originou a ideologia de superioridade e inferioridade racial. Na concepção de Quijano (2000), a origem está no nascimento da América e no surgimento do capitalismo colonial/moderno e eurocentralizado, como um novo padrão de poder mundial. Uma das marcas fundamentais desse padrão de poder é a “classificação social da população mundial a partir da ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial” (p. 1). A partir daí, essa ideia teve grande repercussão e influência nas formas de poder e domínio mundial.
A partir de estudos de evolução biológica do século XIX aplicou-se o conceito de raça à humanidade, marcando a relação de superioridade e inferioridade entre colonizadores e conquistados. Tal concepção justificou as respectivas relações de dominação. Essa classificação racial (que atribuía aos colonizadores o poder de separar a população entre “superior” e “inferior”) não ficou restrita à América. Expandiu-se por todo o mundo, criando novas identidades sociais (índios, negros, mestiços) e redefinindo outras.
Assim, o advento da ideia de raça na América legitimou as relações de dominação europeia. Ideia falsificadora da realidade, mas que justificava a visão eurocêntrica do conhecimento; supremacia cultural a partir de um modelo que se julgava hegemônico não só na Europa, mas fora dela, desrespeitando a diversidade cultural existente em outras sociedades.
Paralelamente ao surgimento dessa perspectiva, teorias sobre raça são elaboradas para justificar e naturalizar as relações coloniais. Isto é, pré-conceitos com status de ciência para explicar as relações entre dominadores e dominados sob a falsa ótica de superioridade e inferioridade entre seres humanos. É o que veremos a seguir.

2. O debate em torno das teorias raciais no século XIX
Neste texto, a prioridade de análise é dada ao século XIX, pois é o período marcante da discussão sobre o significado e o uso do conceito de raça. Ao fazer este debate, tenho ciência da sua complexidade e da impossibilidade de esgotá-lo. Mas, ao mesmo tempo, para entendermos o racismo presente em nossa sociedade precisamos compreender a ideia de raça, seu significado, por quem foi usado e ainda o é, e qual o seu papel nas políticas sociais e educacionais.
A utilização de teorias raciais, em cada momento histórico, não ocorreu de forma aleatória, já que cada uma delas apresentava intenções e objetivos bastante definidos. Nesse contexto, o antropólogo Kabengele Munanga discute raça, partindo do pressuposto de que os conceitos têm uma historicidade através da qual podemos melhor compreender o seu significado. Alerta ainda que conceitos são objetos de manipulação política e ideológica, sendo necessário o máximo de atenção em sua análise para perceber sua eficácia em retratar a realidade contemporânea.
Ainda, segundo esse autor, raça já teve vários significados ao longo da história. Foi utilizada para classificar espécies (animais e vegetais); como referência de “pureza” de sangue por meio da expressão “raça nobre”; para classificar a diversidade humana, apoiando-se na tese do determinismo biológico. Através da antropometria, teve o objetivo de analisar os aspectos externos da raça e do seu potencial criminal para descobrir os criminosos, antes mesmo da prática do crime; tentando provar que a mestiçagem produz raças degeneradas e a superioridade da raça branca sobre as demais, etc.
O debate sobre a origem da humanidade prosseguiu no século XIX, através das versões: monogenista e poligenista. A primeira perdurou até a metade desse século e acreditava que a humanidade era una, isto é, surgira de um só núcleo de criação e dele se expandiu. Em contraposição, a segunda versão, poligenista, defendia a existência de vários núcleos de criação e que estes estariam relacionados às diferenças raciais observadas. Independentemente de uma análise mais aprofundada sobre essas teses, a verdade é que a segunda versão propiciou o avanço de uma interpretação biológica sobre os comportamentos humanos, sendo estes compreendidos a partir de leis biológicas e naturais.
Segundo Skidmore (1976), a partir de 1860 as teorias raciais obtiveram plena aceitação nos Estados Unidos e na Europa. Diz ainda o autor que durante o século XIX surgiram três grandes escolas de teorias raciais: a primeira foi a etnológico-biológica. Nesta escola, a poligenia (criação das raças humanas através de mutações diferentes das espécies) teve grande influência. “A base de seu argumento era que a pretendida inferioridade das raças – indígena e negra – podia ser correlacionada com suas diferenças físicas em relação aos brancos; e que tais diferenças eram resultado direto da sua criação como espécies distintas” (p. 66).
Por sua vez, o suíço Louis Agassiz foi um dos teóricos que mais se apossaram dessa versão, utilizando-a na defesa da superioridade da raça branca sobre as demais. Para ele, as diferentes espécies (ou raças) estariam relacionadas às diferenças climáticas. Assim, essas suposições apontavam a raça branca como superior, tanto em qualidades mentais quanto sociais, demonstrando, inclusive, a capacidade de “criar civilizações”. Para os demais estudiosos dessa versão, esses argumentos tinham base científica; portanto, deveriam ser aceitos como um fato inquestionável. 
Entretanto, essa teoria foi substituída pela teoria de Charles Darwin. Numa viagem de cinco anos ao redor do mundo, o arguto senso de observação de Darwin permitiu-lhe colher dados sobre a adaptação das diferentes espécies animais e vegetais ao seu meio ambiente. A partir daí, construiu a Teoria da Evolução. A sua reflexão foi apropriada pela classe dominante burguesa, aplicando-a mecanicamente à história social humana, vindo justificar o imperialismo, a guerra, o domínio do europeu sobre o resto do mundo, “do mais forte sobre o mais fraco, do mais adaptado ao menos adaptado” (SCHWARCZ, 1993, p. 80). É o chamado “darwinismo social”.

              A segunda escola do pensamento racista, a escola histórica, surgiu nos Estados Unidos e na Europa, porém, demonstrou-se influente também no Brasil. Os pensadores dessa corrente partiam do pressuposto de que as diversas raças humanas poderiam ser diferenciadas umas das outras, e que, no entanto, a raça branca seria, indiscutivelmente, superior às demais. Gobineau, um dos representantes dessa ideia, contribuiu com a divulgação do pensamento determinista, afirmando que o fator determinante da história humana era a raça. Defensor ardoroso da pureza das raças, Gobineau argumentava sobre a “raça suprema ariana”, “produtora exclusiva de civilização e sobre a associação entre a mestiçagem e a decadência (supondo que a mistura de raças ‘desiguais’ conduz à degeneração de um povo)” (SEYFERTH, 2002, p. 19). Para ele, o surgimento das grandes civilizações decorreria da conquista das raças inferiores. Assim, a abordagem histórica teve como marca principal o culto ao arianismo.
A terceira escola do pensamento racista intitula-se determinismo biológico. Para DaMatta (1987), no determinismo biológico “as diferenciações biológicas são vistas como tipos acabados e que cada tipo está determinado em seu comportamento e mentalidade pelos fatores intrínsecos ao seu componente biológico” (p. 71). Ou seja, ele é imutável pela ação social, tirando a responsabilidade da sociedade, já que são os elementos herdados por cada indivíduo que determinam, desde o seu nascimento, o que ele será futuramente: um agricultor, um desempregado, um burguês ou um mendigo, sem que ninguém possa intervir nesses resultados. Assim, esse determinismo é usado para justificar a superioridade e o domínio de uma raça sobre outra.
Todas essas teorias racistas foram muito bem aceitas e utilizadas pelos teóricos brasileiros do século XIX, dentre eles, Silvio Romero, Nina Rodrigues, Oliveira Viana e João Batista Lacerda. O antropólogo Nina Rodrigues, por exemplo, um dos nomes mais destacados entre os doutrinadores racistas da época, não via a mistura das raças como algo positivo para o Brasil. Através de seus estudos sobre a influência do africano no Brasil, realizado na Bahia na década de 90 do século XIX, ele detectou a inferioridade do africano a partir de seus parâmetros científicos. Sua teoria foi aplicada em seu trabalho de medicina legal, afirmando que “as características raciais inatas afetavam o comportamento social e deveriam ser levadas em conta por legisladores e autoridades policiais” (Da Matta, 1987, p. 76).
Assim, na concepção de Nina Rodrigues, a raça negra não poderia ter tratamento equivalente à raça branca. Ele se opunha veementemente à crença de que o Brasil se tornaria branco através do processo de miscigenação, tese defendida por João Batista Lacerda a partir da teoria do branqueamento. Na opinião de Lacerda, a mestiçagem seria um fenômeno inevitável. Assim, “a melhoria da raça brasileira, através da miscigenação das raças inferiores com o branco, iria produzir no Brasil, ao cabo de 100 anos, o total embranquecimento da população” (LOBO, 2000, p. 72). Para isto, o incentivo à imigração europeia para o Brasil seria fundamental.
Essa também era uma proposta da eugenia (eu: boa, genus: geração), criada em 1883 pelo britânico Francis Galton, com o objetivo de difundir a eliminação das raças inferiores, intervindo, sobretudo, na reprodução das pessoas e nos casamentos inter-raciais. Segundo esse pensamento, era necessário, através dessas práticas, encontrar um maior equilíbrio genético para aprimorar as populações, identificando os traços físicos que apresentassem grupos sociais indesejáveis. Os eugenistas diziam que o problema não se resumia à questão do negro e do mestiço, o que os preocupava era a obtenção de pessoas sadias, evitando-se a reprodução daqueles que pudessem degenerar a raça. No entanto, negros, mestiços e pobres eram os principais responsáveis tanto pela sua miséria material e moral quanto pela degeneração da espécie.

3. Considerações finais
Embora o conceito biológico de raça tenha sido desconstruído cientificamente, nos dias atuais, muitas pessoas ainda acreditam que os negros são inferiores aos brancos, e devem ocupar um lugar específico, sem possibilidade de mobilidade na sociedade. Assim, as marcas deixadas pela antropometria, pela ideologia do “sangue puro”, pela classificação da espécie humana através da cor da pele e pelas características morfológicas (ou seja, a raça no sentido biológico) ainda persistem nas atitudes de grande parte da população mundial. E, nessas atitudes, percebemos a manifestação do racismo, fruto da construção histórica de raça.
Para Seyferth (2002), “como conceito, racismo diz respeito às práticas que usam a ideia de raça com o propósito de desqualificar socialmente e subordinar indivíduos ou grupos, influenciando as relações sociais” (p. 28). Nessa perspectiva, o racismo é uma ideologia que atinge não somente a população negra, mas todas as populações (judeus e árabes, por exemplo) que em diferentes épocas e contextos são tratadas de forma diferenciada e desigual.
Enfim, o racismo atua também na crença do poder, da autoridade, do controle de um grupo que se vê como superior aos demais. Nesse sentido, é necessário estudar e compreender a origem tanto de raça quanto de racismo para evitar que elementos da sua versão biológica permaneçam criando desigualdades e, a partir daí, possamos estabelecer novas relações sociais equânimes.

4. Referências bibliográficas
BRANDÃO, Ana Paula (coord.). Saberes e Fazeres, modos de sentir. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, v. 2, 2006. (Projeto A Cor da Cultura).
DAMATTA. Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
LOBO, Lilia Ferreira. Racismo e controle social no Brasil: a psiquiatria e os saberes competentes. In: BRANDÃO, André Augusto (org.). Programa de Educação do Negro na Sociedade Brasileira. Niterói: EdUFF, 2000. (Cadernos PENESB; 5). 
I SEMINÁRIO DO II CONCURSO NEGRO E EDUCAÇÃO, 2001. Rio de Janeiro. ANPED. MUNANGA, Kabengele. Conceitos e categorias na área do Negro e Educação.
QUIJANO, Aníbal. La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Publicado em Lander, Edgardo (comp.). Bs.As. CLACSO, 2000.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
SEYFERTH, Giralda. Racismo e o ideário da formação do povo no pensamento brasileiro. In. OLIVEIRA, Iolanda (org.). Relações raciais e educação: temas contemporâneos. Niterói: EdUFF, 2002. (Cadernos PENESB; 4).
SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro; tradução de Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.